Por Amália Safatle

“Na natureza não existem prêmios nem punições.

Existem consequências.”

James Abbott McNeill Whistler,

pintor e autor americano

 Por mais que a mente humana tenha se tornado tão engenhosa em seu curto e recente período na linha do tempo da Terra, não há como comparar com os 3,8 bilhões de anos de evolução da natureza. Se existe um lugar onde o ser humano pode encontrar boa parte das respostas e soluções para problemas ligados à vida de qualidade, é neste formidável laboratório a céu aberto, que está em permanente trabalho de desenho e redesenho.

Suspeita-se que a inteligência humana não seja lá tão brilhante quando, em vez de inspirar-se na expertise acumulada pela natureza, a modifica e altera os serviços por ela prestados, a ponto de pôr em risco a própria existência. De acordo com o Millennium Ecosystem Assessment (2005), nós, humanos, mudamos o ambiente natural mais rapidamente nos últimos 60 anos do que nunca antes na História do planeta.

O resultado é uma corrosão das bases ambientais, que sustentam não só as atividades econômicas como o bem-estar das pessoas e a vida de todas as espécies. Felizmente, tem crescido a percepção de que é possível encontrar muitas respostas nas Soluções baseadas na Natureza – expressão cunhada entre os anos de 2009 e 2010 pela União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês).

Mas o que são exatamente as Soluções baseadas na Natureza? Segundo a IUCN, trata-se das intervenções que utilizam a natureza e as funções naturais de ecossistemas saudáveis para enfrentar alguns dos desafios mais urgentes do nosso tempo. Esse tipo de solução ajuda a proteger o ambiente, mas também proporciona inúmeros benefícios econômicos e sociais.

Esta é a definição que a Fundação Grupo Boticário, membro da IUCN, tem adotado em suas iniciativas para divulgar conceitos e práticas e SbN no Brasil – entre elas, a chamada de casos que é objeto desta edição, por meio da qual a Fundação Grupo Boticário, em parceria com o Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV-Eaesp e o Ministério do Meio Ambiente, selecionaram propostas de diversas regiões do País.

As SbN valem-se de atributos e processos do sistema complexo da natureza, como sua habilidade de armazenar carbono e regular o fluxo hídrico, com o objetivo de alcançar determinados resultados. Por exemplo, reduzir o risco de desastres, melhorar o bem-estar humano e promover a economia verde e socialmente inclusiva. Com isso, podem transformar os desafios sociais e ambientais em oportunidades inovadoras, fazendo do capital natural uma fonte de prosperidade.

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Por que agora? – razões para implementar a SbN

  • Aumento da consciência e do interesse em manejar e manter a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos, como um meio para reduzir os riscos econômicos ao garantir o fornecimento continuado de recursos essenciais.
  • Tem demonstrado vantagens financeiras devido à redução de despesas com capital inicial e custos operacionais.
  • É um termo guarda-chuva, que mais bem promove nossa dependência da biodiversidade para aumentar a resistência e a resiliência dos sistemas socioecológicos em relação às mudanças globais e aos eventos extremos imprevisíveis, além de fornecer serviços ecossistêmicos que contribuem positivamente para a saúde e o bem-estar humano.

Fonte: European Commission, 2015. Nature-based Solutions and Re-Naturing Cities

No exterior, o conceito e a aplicação de SbN têm sido disseminados mais fortemente pela Comissão Europeia, que o adaptou segundo sua ótica de desenvolvimento. Mas, e no Brasil, reconhecidamente uma potência ambiental e com profundos problemas econômicos e socioambientais para resolver?

“Existem poucas informações disponíveis sobre o tema e a maioria é internacional, o que dificulta a aplicação à realidade brasileira”, afirma Maria de Lourdes (Malu) Nunes, diretora-executiva da Fundação Grupo Boticário. “Por meio dessa iniciativa, mostramos que é possível enfrentar os diversos problemas existentes em nossa sociedade tendo a natureza como parte da solução.”

O grande trunfo das SbN é sua ampla abordagem. As soluções valem-se de uma gama de ações em variados campos, como restauração, infraestrutura, gestão e proteção para enfrentar desafios sociais – entre eles acesso a água limpa, alimentos, geração de renda, equilíbrio climático –, com o objetivo de alcançar o bem-estar humano, ao mesmo tempo em que gera benefícios para a conservação.

“As SbN ajudam a conciliar os objetivos das convenções da ONU sobre Mudança Climática, Diversidade Biológica e Desertificação”, aponta André Ferretti, gerente de economia da biodiversidade da Fundação Grupo Boticário.

Contribuem também para atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e para que o Brasil cumpra o Plano Nacional de Adaptação (PNA). Lançado pelo governo em 2016, o plano tem a Adaptação Baseada em Ecossistemas (AbE) como um dos seus princípios. A AbE, por sua vez, é uma forma de Solução baseada na Natureza.

Segundo Malu Nunes, a inclusão da AbE no Plano Nacional de Adaptação abre uma importante brecha para o uso estratégico de Soluções baseadas na Natureza, pois as diretrizes do PNA serão transmitidas para os governos locais e empresas dos diversos setores.

O Plano Nacional de Adaptação (PNA), instrumento da Política Nacional sobre Mudança do Clima, reconhece o papel dos serviços ecossistêmicos na redução da vulnerabilidade humana, e elege entre seus princípios orientadores a priorização de medidas de Adaptação baseada em Ecossistemas (ABE) para a promoção da adaptação à mudança do clima no País.

“Os conceitos de AbE e de SbN são tão similares e sinérgicos que se misturam. É possível apontar que as medidas AbE são Soluções baseadas na Natureza voltadas para os desafios da mudança climática”, diz Mariana Egler, analista ambiental do Ministério do Meio Ambiente.

Egler observa que, entre os projetos selecionados nesta chamada de casos, cerca de sete podem ser igualmente considerados soluções de Adaptação baseada em Ecossistemas, pois se baseiam na recuperação de ecossistemas que estão em busca da provisão de serviços ecossistêmicos que colaboram com a redução da vulnerabilidade à mudança do clima.

São eles: os projetos ligados à conservação e provisão de água (propostos por WRI, IAV Instituto Ambiental Vale, Instituto BioAtlântica e Prefeitura de Catende); aqueles voltados para a redução de enchentes urbanas (Prefeitura de Campinas); e os pertinentes à redução da vulnerabilidade costeira por meio da recuperação de restingas (Universidade Federal Fluminense) e à melhora da qualidade da água (Phytorestore).

“O desenvolvimento de estudos de monitoramento dos resultados dessas iniciativas a longo prazo podem fornecer subsídios técnicos e científicos para consolidar a defesa dessas ações, em comparação com iniciativas cinza, sobretudo se consideramos os benefícios múltiplos das medidas de AbE e sua viabilidade financeira a longo prazo”, diz Egler.

Princípios da SbN

  • Entrega uma solução efetiva para um desafio global utilizando a natureza
  • Fornece benefícios da biodiversidade em termos de diversidade e ecossistemas bem manejados
  • Apresenta melhor relação custo-efetividade em relação a outras soluções
  • É comunicada de maneira simples e convincente
  • Pode ser medida, verificada e replicada
  • Respeita e reforça os direitos das comunidades sobre os recursos naturais
  • Atrela fontes de financiamento tanto públicas como privadas

Fonte: IUCN. 2012. The IUCN Programme 2013-2016

Percepção da sociedade

Muitas vezes, a sociedade não percebe que os benefícios dos quais usufrui provêm dos serviços ecossistêmicos, como acesso a água limpa e a alimentos. “O conceito de Soluções baseadas na Natureza é uma forma de aumentar a percepção das pessoas sobre os serviços que a natureza presta e, com isso, atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)”, afirma Matheus Couto, analista da cooperação entre o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e o Centro de Monitoramento da Conservação Mundial (WCMC, na sigla em inglês).

Couto pondera, entretanto, que é preciso avaliar, caso a caso, quando vale buscar soluções na natureza, na engenharia, ou em modelos híbridos, que combinem as duas. Nem sempre aquelas baseadas na natureza são ao mesmo tempo mais efetivas e mais acessíveis em termos financeiros (affordables). Algumas vezes, caminhos que integram as SbN com a engenharia são melhores sob estes pontos de vista.

É o que mostra o relatório Resilience to Extreme Weather, publicado em 2014 por The Royal Society Science Policy Centre, no que se refere à redução de impactos causados por eventos extremos, como ondas de calor, ressacas, inundações e secas (ver figura 12 do estudo).

De todo modo, para Couto, é preciso pensar nas diferentes soluções como forma de aumentar a conservação da biodiversidade e dos sistemas naturais. Isso porque, entre os 17 ODS existem quatro, ligados à biosfera, que estão na base de tudo: vida sobre a terra (ODS 15), vida debaixo da água (14), água limpa e saneamento (6) e combate às mudanças climáticas (13). Essa abordagem, que propõe um novo entendimento dos ODS, foi apresentada em junho do ano passado pelo diretor do Stockholm Resilience Centre, Johan Rockström, e por Pavan Sukhdev, que integra o conselho do centro.

Como mostra esta imagem apelidada de “bolo de casamento”, os quatro ODS que fazem parte da base dão sustentação aos oito objetivos sociais, entre eles erradicação da pobreza, igualdade de gênero e educação de qualidade. Com isso, é possível atingir os quatro objetivos de caráter econômico, como emprego digno e crescimento econômico, e consumo responsável. Transversal a todos está o 17º objetivo, que são as parcerias para atingir as metas. Assista aqui ao vídeo que explica o diagrama.

Crédito: Azote Images for Stockholm Resilience Centre

Resumindo, a mensagem de Rockström e Sukhdev é de que a economia deve atender a sociedade para que esta evolua dentro do espaço operacional seguro do planeta. Tal abordagem, no entanto, não ganhou tração no âmbito da Organização das Nações Unidas, segundo a qual poderia denotar, inadvertidamente, um conceito de hierarquia entre os ODS, em vez de os objetivos serem vistos de forma transversalizada.

Para André Ferretti, o diagrama do bolo de casamento ajuda a reforçar o entendimento de que não haverá como atingir os demais objetivos se essa base natural não for bem conservada. Segundo ele, além de servir como pilar, a natureza e as soluções nela baseadas acabam gerando benefícios adicionais, contribuindo para atingir os demais objetivos.

Ao restaurar uma área florestal, por exemplo, os ganhos para o clima e para a oferta e qualidade da água podem ser associados a benefícios para a alimentação e a saúde humana e geração de renda se, entre as espécies, forem utilizadas plantas frutíferas.

Outro exemplo: para conter uma encosta suscetível a desmoronamentos, se for feita uma restauração inspirada na natureza em vez de um muro de arrimo convencional, também haverá ganhos associados – de ordem paisagística, de melhoria do microclima e de recomposição de ecossistemas.

Ao estimular as SbN, a Fundação Grupo Boticário reposicionou sua estratégia de atuação, buscando amplificar os efeitos do seu desempenho de suas ações. Segundo Ferretti, a Fundação, que trabalha com conservação desde os anos 1990, centrava suas atividades na conservação de áreas protegidas e apoio a projetos por meio de editais.

Mas a Fundação entendeu que poderia ir além da filantropia, atuando par a par com o setor privado, por meio de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), sistema de remuneração por meio do qual o agente que promove o benefício ambiental é recompensado e o beneficiário deve pagar o valor econômico referente.

Daí foi um pulo para que passasse a atuar mais fortemente com temáticas ligadas a água, adaptação climática e mitigação.

“Desde 2015, passamos a ter mais contato com AbE e SbN, o que tem a ver com a nossa instituição, uma fundação empresarial”, diz Ferretti. Isso porque as SbN podem fazer parte de investimentos privados, podendo gerar renda e lucro ao mesmo tempo em que promovem a conservação.

A chamada de casos resulta dessa nova frente de atuação. “Esperamos que esse material inspire outras empresas, universidades e governos a beneficiarem suas regiões utilizando a natureza como solução”, diz Malu Nunes.

Saiba aqui como foi feita a seleção das propostas.