Por Cíntya Feitosa

Conheça dez exemplos de soluções praticadas por organizações em resposta a desafios e oportunidades ligadas à gestão de recursos hídricos

A crise hídrica vivida pelo Nordeste e o Sudeste brasileiro nos últimos anos, e mais recentemente no Centro-Oeste, evidenciou a necessidade de atenção à forma como governo, empresas e cidadãos se relacionam com a água. Mais ainda que o debate sobre quem paga quanto pela água, tema que colocou o setor privado na mira de organizações não governamentais e tomou as manchetes de jornais no auge da crise, a questão central é como cuidar para que esse bem precioso não falte, e que esteja disponível com boa qualidade. O rompimento da barragem da mineradora Samarco em Mariana, Minas Gerais também pôs em xeque a empresa a respeito do impacto de suas atividades sobre o ambiente, muito além dos muros da empresa.

A responsabilidade não é só do poder público e uma nova relação com a água não se estabelece apenas com o peso no bolso: é preciso avaliar de onde vêm os recursos hídricos e como planejar sua distribuição e consumo responsável, evitando perdas, desabastecimento e garantindo boa qualidade.

A escassez hídrica apareceu entre os cinco maiores riscos nas últimas sete edições da Pesquisa de Percepção sobre Riscos Globais do Fórum Econômico Mundial, e desde 2015 passou a ser listada não mais como risco ambiental, mas social. Água limpa e saneamento é também um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas, com implicações sobre todos os setores (saiba mais aqui).

A ideia de abundância, com a visão de que a água é um recurso renovável fora de risco de escassez, ao menos em algumas regiões, deixou o tema fora das prioridades nas tomadas de decisão das empresas por muitos anos. Essa visão caiu por terra com a crise, e agora parte do setor privado atenta a uma condição de escassez que pode se repetir nos próximos anos está mais alerta. Mais que os impactos da falta de água para os negócios, as empresas devem ainda buscar tornar sua visão mais abrangente, que leva o olhar dos impactos das suas próprias atividades para outro, o da bacia e da cadeia de valor.

Ao longo de 2016 e 2017, a gestão empresarial de recursos hídricos foi tema da agenda integrada das Iniciativas Empresariais do Centro de Estudos em Sustentabilidade (FGVces) da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV-Eaesp). O grupo de trabalho reuniu 21 empresas de diversos setores e buscou contribuir para a discussão sobre aspectos de gestão já incorporados pelas empresas e desafios de gestão associados à água (mais aqui).

O caminho natural é que as empresas comecem a atuar no tema apenas no nível do compliance, atendendo a normas para garantir o funcionamento do negócio. No entanto, com o amadurecimento de seus estágios de gestão, passam a observar a relação com a água fora de seus muros, voltando-se para questões como gestão de riscos dentro do negócio e também na cadeia de valor, medidas de eficiência e atuação em instâncias de tomada de decisão. A publicação que reúne os aprendizados dos dois anos de atuação do FGVces no tema traz recomendações e ferramentas de gestão, além de referências sobre como a gestão de recursos hídricos tem sido abordada globalmente.

Os riscos relacionados à água vão desde desabastecimento até ambiente insalubre de trabalho, decorrente, por exemplo, de inundações. Isso sem falar nos riscos regulatórios, seja por instabilidade e ineficiência na regulação, seja por ser pego de surpresa, e ainda reputacionais, nos casos em que o negócio é visto como pouco responsável ambientalmente (mais sobre riscos aqui).

Boas práticas e experiências

Como parte das atividades de discussão sobre água, os pesquisadores das Iniciativas Empresariais lançaram em 2016 uma chamada de casos e selecionaram, entre 40 inscritos, dez exemplos de soluções práticas a desafios e oportunidades ligadas à gestão de recursos hídricos. Os casos foram separados nos eixos negócio – abrangendo programas de gestão, ações relacionadas a estrutura organizacional, modelos de negócio e estudos e diagnósticos realizados por empresas – e articulação, que concentra casos de arranjos institucionais e Pagamento por Serviços Ambientais (PSA).

  • O Programa de Gestão Sustentável de Água, iniciativa da JBS, foi motivado pela crise hídrica nos anos de 2014 e 2015. O projeto tinha como objetivo mitigar o risco de desabastecimento e aumentar a eficiência no uso da água, identificar plantas prioritárias e microbacias críticas, além de mensurar impactos financeiros relacionados à água e fornecer ferramentas para tomada de decisão. O programa envolveu diversas áreas da empresa, o que permitiu um olhar integrado sobre diferentes unidades. Também envolveu uma busca por informações externas à empresa, resultando em uma matriz de criticidade que levou à identificação de perfil de risco de diferentes unidades, integração da estratégia relacionada à água e ao desenvolvimento de metodologias para tomada de decisão nos investimentos.
  • O Carrefour criou um comitê de crise hídrica para avaliar o cenário das lojas da rede e o potencial risco em caso de desabastecimento. O projeto foi desenvolvido a partir de melhorias no monitoramento de consumo e implementou alertas sobre eventos críticos nas lojas. O comitê tornou-se uma estrutura permanente na empresa, envolvendo a alta liderança.
  • A Sociedade de Abastecimento de Água e Saneamento (Sanasa), de Campinas, identificou na baixa disponibilidade hídrica na região do município a oportunidade para implementar uma nova tecnologia para tratamento de esgoto (MBR – Biorreator com Membranas de Ultrafiltração), que resultou no aumento da distribuição de água de reúso para limpeza e manutenção urbana.
  • A Sanasa também se juntou à Braskem para liderar a criação do Movimento pela Redução de Perdas de Água na Distribuição. A iniciativa foi lançada no âmbito do Pacto Global, movimento multissetorial liderado pela ONU para viabilizar os ODS. O objetivo foi reunir governos, sociedade civil e empresas para discutir e definir ações práticas contra perdas. Assim, as empresas então buscaram influenciar as políticas públicas de gestão da água.
  • Na Natura, desde 2010 a água passou a ser considerada uma questão estratégica. Ao sentir a necessidade de um indicador para mensurar seu impacto sobre os recursos hídricos, passou a calcular a sua pegada hídrica, aplicando a abordagem do ciclo de vida (saiba mais sobre Pensamento de Ciclo de Vida aqui). A empresa considerou a quantidade de água consumida, conforme o índice de disponibilidade e o estresse hídrico local, e a qualidade da água impactada por suas operações. Para o projeto, a empresa testou e adaptou métodos e critérios para a contabilização dos indicadores avaliados e desenvolveu metodologia própria.
  • O Consórcio Intermunicipal das Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (Consórcio PCJ) motivou empresas a participar de um grupo que as aproximasse de suas atividades, entre estas encontros técnicos e consultoria em diversas áreas relacionadas à melhora da gestão de recursos hídricos na região. O objetivo foi qualificar as empresas para participação em tomadas de decisão sobre gestão da água.
  • No campo do planejamento e prevenção de riscos, a Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS), juntamente com a Fundação Grupo Boticário, desenvolveu um programa de articulação para estabelecer um formato de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) em dois municípios na Região Metropolitana de Curitiba. A ideia era incentivar a conservação de áreas naturais consideradas prioritárias para a garantia de abastecimento de água para a região. O trabalho envolveu articulação com o poder público local e com proprietários de áreas, ações de educação ambiental e definição de arranjo institucional e marco legal para implantação do PSA.
  • Por meio de levantamento de disponibilidade hídrica na região onde atua, em Monte Mor (SP), a TetraPak percebeu uma redução da vazão dos rios e nascentes locais. Passou então a realizar ações para preservação da microbacia do Bairro do Pico, em Vargem (SP), com gestão participativa dos recursos hídricos. Entre as ações estão a recuperação da mata ciliar e a instalação de biodigestores para tratamento de esgoto em propriedades rurais ribeirinhas, assim como coleta de água da chuva. O objetivo, além de promover a gestão responsável da água, é gerar água de qualidade para a sua fábrica. A empresa destaca que um elemento crucial para o sucesso do projeto é o engajamento comunitário.
  • O setor privado tem relação direta mesmo nos casos apresentados por organizações da sociedade civil. A The Nature Conservancy (TNC) no Brasil desenvolveu uma “planta baixa” com possibilidades de gestão integrada da Bacia do Rio Tapajós, na Amazônia, região de alta complexidade por concentrar interesses econômicos, áreas protegidas e territórios indígenas. A iniciativa, chamada de “blueprint do Tapajós”, buscou construir uma visão de futuro para a região, com conciliação de interesses sociais, culturais, ambientais e econômicos, a partir de um guia para tomada de decisão.
  • O WWF liderou a ativação do Observatório da Governança das Águas, com o objetivo de monitorar a governança do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos do Brasil. O Observatório conta atualmente com mais de 80 organizações, entre sociedade civil, academia, setor privado e comitês de bacias hidrográficas.

A gestão da água tem forte caráter local e não é possível replicar modelos e boas práticas sem levar isso em conta. Para um bom planejamento é essencial ter acesso a dados de disponibilidade e tipos de uso na região em que um negócio atua. Por isso, uma das recomendações para as organizações é que participem ativamente de instâncias de tomada de decisão sobre a água. Elas podem se apoiar em boas ferramentas de gestão, como a Valoração de Serviços Ecossistêmicos e a Avaliação de Ciclo de Vida, para analisar a relevância do tema para seus negócios e estabelecer práticas adequadas (mais sobre as ferramentas em quadro aqui).