Por Amália Safatle

No Iluminismo, a separação do saber em diversas áreas e disciplinas foi fundamental para a humanidade avançar e aprofundar o conhecimento. Sem a crescente especialização, jamais teríamos chegado ao nível de hoje e nem conseguiremos ir mais longe no futuro. Mas, nesse caminho de ultraespecialização, é muito fácil perdermos a noção do todo. Sem uma visão integrada de tudo o que somos, de tudo o que nos une e conecta com o mundo à nossa volta, dificilmente vamos conseguir lidar com os complexos desafios globais que se apresentam.

Uma formação integrada para a sustentabilidade, portanto, pede o olhar transdisciplinar. Mas o que é a transdisciplinaridade?

Para explicar a diferença entre as visões disciplinar, multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar, é mais fácil usarmos um exemplo. Foi o que fez o físico romeno Basarab Nicolescu, um dos principais estudiosos do tema. De modo a ilustrar sua explicação, ele cita a Igreja da Sagrada Família, construída por Antonio Gaudí em Barcelona (leia mais nesta reportagem de Página22):

Enquanto objeto de estudo disciplinar, a Igreja da Sagrada Família remete à Arquitetura, uma disciplina que tem sua própria metodologia. Mas ele também pode receber olhares cruzados partindo de diferentes disciplinas, como a História da Arte, a História das Religiões, a Física (sobre a resistência dos materiais), a Química, a Psicanálise (sobre a personalidade de Gaudí). Essa já é uma visão multidisciplinar.

Outra possibilidade é transferir métodos de uma disciplina para outra, ou seja: com a finalidade de terminar o templo que Gaudí deixou inacabado, podemos nos servir de seus projetos e desenhos para nos inspirar, ou utilizar a eletrônica e a realidade virtual, e transferir o método da Informática para a Arquitetura. Trata-se da visão interdisciplinar.

“Podemos, contudo, ter um olhar radicalmente diferente”, diz Nicolescu. “Como posso eu mesmo, pessoa privada, visitar esse templo? Em que esse objeto concerne a mim, à minha vida, à nossa vida de hoje, ao sentido deste mundo onde eu vivo?” Aqui já estamos tratando da transdisciplinaridade, em que há um caminho de ida e volta entre o mundo interior e o objeto exterior. “Talvez seja isso o que Gaudí queria exprimir (ao construir a igreja): oferecer a nós sua própria representação do mistério da realidade, irredutível a qualquer discurso.”

Nicolescu denomina essas visões de quatro flechas do arco do conhecimento, em que nenhuma substitui a outra. Não são olhares excludentes. “A transdisciplinaridade não veio tomar o lugar ocupado pelo competente exercício da disciplinaridade, da multi e da inter. Essas quatro flechas não apenas podem como devem continuar coexistindo”, diz Maria de Mello, do Centro Internacional de Pesquisas e Estudos Transdisciplinares (Ciret), e que participou do desenvolvimento do programa de Formação Integrada para a Sustentabilidade (FIS) no FGVces.

A transdisciplinaridade é uma das inspirações teórico-metodológicas nas quais o FIS se baseia (a outra é a Teoria U, descrita no final deste texto).

A transdisciplinaridade é aquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de todas as disciplinas, remetendo também à ideia de transcendência. A sua proposta é mais que integrar conhecimentos de diversas disciplinas – o que se dá por meio da interdisciplinaridade –, mas a ultrapassá-los e atravessá-los, incluindo a arte, a cultura e a espiritualidade.

Em outras palavras, “é uma teoria do conhecimento, é uma compreensão de processos, é um diálogo entre as diferentes áreas do saber e uma aventura do espírito. A transdisciplinaridade é uma nova atitude, é a assimilação de uma cultura, é uma arte, no sentido da capacidade de articular a multirreferencialidade e a multidimensionalidade do ser humano e do mundo”, define o Centro de Educação Transdisciplinar (Cetrans).

A transdisciplinaridade apoia-se em três pilares. São eles a complexidade, a lógica do terceiro incluído e os níveis de realidade.

Em relação ao pensamento complexo, por mais que se compreenda as partes de um sistema, não estamos habilitados a compreender a propriedade do todo que o caracteriza. Existem interações que não podem ser resolvidas ou explicadas por equações lineares, ou seja, por relações diretas entre causa e efeito. Assim, alguns aspectos que caracterizam o comportamento de sistemas complexos incluem: paradoxos, incompletude, autorreferências e contradições.

Para caracterizar uma lógica que vá além do clássico pensamento binário “isso ou aquilo’, o filósofo de nacionalidade romeno-francesa Stéphane Lupasco elaborou o que se chama lógica do terceiro incluído. Para a lógica clássica, os termos A e não-A constituem um par de opostos, uma polaridade, não havendo possibilidade para um terceiro termo T. No entanto, na lógica lupasciana, é possível encontrar um terceiro termo T que integra os opostos e resolve a polaridade entre A e não-A. Essa lógica permite o “isso e aquilo” e o “nem isso nem aquilo”.

O terceiro pilar é o que reconhece diversos níveis de realidade, assim como diferentes formas de o ser humano acessá-los. O nível 1 é aquele que se busca por meio dos cinco sentidos. O 2 é o que captamos pelo nosso aparato de percepções: representações, pensamentos, formulações, emoções. Já o nível 3 é aquele percebido pela intuição, pelo sentimento e/ou pelo imaginário – é aqui que adentramos o mundo dos símbolos, dos mitos, da poesia. E, por fim, o 4 é o que nos permite contemplar o mundo das essências e vivenciar experiências mais etéreas e espirituais. Saiba mais aqui.

Para acessar esses níveis de realidade, lidamos com razões distintas, a formal, a sensível e a experiencial. A razão formal é aquela que remete à lei e ao hábito. Consiste na fundamentação, conceitos, metodologias, conteúdos, teorias. Está em conformidade com a regra geral e é a razão com a qual estamos mais acostumados a lidar quando buscamos o conhecimento.

Já a razão sensível encontra-se nos sentidos, nos sentimentos e na imaginação. Explora a linguagem simbólica, como as metáforas, e permite acesso às potencialidades e à intuição e a tudo aquilo que até então não foi imaginado. E a razão experiencial está na inteligência prática, nas experiências que produzem sentido e se transformam em conhecimento à medida que vão sendo interpretadas.

Na autoformação, o “aprendente” é estimulado a travar um contato consigo mesmo. Isso inclui, por exemplo, momentos de silêncio, convite a registros pessoais das experiências vividas, expressões artísticas, práticas corporais e contemplação da natureza. Trata-se de um processo individual e permanente de produção de sentido pessoal no cotidiano.

Na hetero, a formação é realizada a partir do relacionamento com o outro. Pode ser estimulada em espaços relacionais criados em grupo, com uma equipe, com uma turma em uma viagem de campo, enquanto a ecoformação se dá pelo contato direto com a realidade, com o ambiente que estamos vivenciando, o que dialoga muito com a razão experiencial.

Em todos essas frentes de relacionamento, a formação é favorecida por algumas práticas e códigos de comportamento, que chamamos de “etiqueta relacional”.

Começamos pela escuta sensível, aquela que se faz necessária diante do fato em geral, que sabemos ouvir muito pouco. Quando alguém nos fala, em vez de escutar até o fim, logo começamos a comparar o que é dito com nossas ideias e referenciais prévios. “Esse processo mental – que chamo de automatismo concordo-discordo –, quando levado a extremos, é muito limitante. Ouvir até o fim, sem concordar nem discordar, é muito difícil para todos nós”, avalia neste texto o pesquisador nas áreas de pensamento sistêmico, complexidade e ciência cognitiva Humberto Mariotti.

Mariotti explica que o automatismo “concordo-discordo” funciona assim: quando nosso interlocutor começa a falar, de imediato assumimos duas atitudes: a) “já sei o que ele vai dizer e concordo; portanto, não vou perder tempo a ouvi-lo”; b) “já sei o que ele vai dizer e discordo; assim, não tenho por que ouvi-lo até o fim”. Em ambos os casos, o resultado é o mesmo: negamos a quem nos fala a capacidade ou a possibilidade de dizer algo novo.

Hernán Piñera
Hernán Piñera

Faça você mesmo a prova: tente escutar até o fim, sem concordar nem discordar, o que o seu interlocutor diz. Procure evitar que, logo às primeiras frases, você já esteja pensando no que vai responder. Parece fácil, mas verá como é difícil. E constatará que esse automatismo é uma das manifestações mais poderosas do condicionamento de nossa mente pelo modelo mental “isso ou aquilo” – a tal da lógica binária.

A principal utilidade do método que favorece o diálogo e a escuta sensível é perceber e pensar as mesmas questões de modo diferente, a fim de que daí possam emergir ideias novas. “O questionamento básico do diálogo é simples e pode ser enunciado assim: ‘E se suspendermos – ao menos de modo temporário – as nossas certezas, e conversarmos fora de sua influência para ver o que acontece? Posto de outra forma: mudar o modo de olhar, modificar a perspectiva, observar a partir de outros ângulos, pensar os mesmos problemas de modo diferente”, diz Mariotti.

O método, portanto, aplica-se a qualquer contexto no qual seja necessário produzir ideias não rotineiras e aprender em grupo, abandonando o modo habitual de perceber o mundo. A área educacional e o universo das empresas são dois desses contextos.

Mas a escuta sensível é apenas um dos atributos para essa nova cultura de diálogo. Na outra ponta, existe o autoposicionamento. Trata-se de uma oportunidade de usar construtivamente os nossos sentimentos e não escondê-los, de revelar intenções e valores. Um dos obstáculos para uma boa conversa fluir é a distância entre o que estamos realmente pensando e o que estamos realmente dizendo. Na medida em que me permito autoposicionar, permito aos outros se autoposicionarem. Dessa forma, o autoposicionamento é uma oferta que fazemos a nossos interlocutores. A prática pode clarificar e impulsionar novas ideias.

A escuta sensível e o autoposicionamento complementam-se com a atenção plena (mindfulness): é o processo de observar atentamente uma experiência enquanto ela se desvela, tornando-nos cientes dela momento a momento. No exercício da atenção plena, deixamos de comparar o tempo todo e de buscar aquilo que ocupa nosso funcionamento mental.

A TEORIA U

Menos uma teoria e mais um processo, a Teoria U é um método para liderar mudanças profundas. Por meio de linguagem pragmática e acessível ao ambiente das escolas de negócios, a Teoria U propõe uma “jornada” voltada para ampliar a qualidade de percepção e consciência individual, e consequentemente fazer emergir resultados mais eficazes e inovadores para situações complexas. Assim, faz todo sentido que seja aplicada em processos inovadores de formação e de tomada de decisão no ambiente de negócios.

Desenvolvida por Otto Scharmer e outros pesquisadores da área de Aprendizagem e Mudança Organizacional do Massachusetts Institute of Technology (MIT), a Teoria U busca auxiliar indivíduos – sozinhos ou em seus grupos e organizações – a atuar em níveis mais profundos de atenção, presença e consciência, de maneira que suas ações não sejam mais guiadas por condicionamentos do passado, mas pelas possibilidades de um novo futuro com base na compreensão mais profunda do sistema do qual fazem parte, criando resultados mais inovadores e eficazes.

Teoria U propõe que a qualidade dos resultados que obtemos em qualquer sistema social é consequência da qualidade de percepção e consciência a partir da qual operamos nesses sistemas.

O processo sugerido pela Teoria U compõe-se de sete passos que se distribuem em três movimentos principais, que desenham a letra U.

A descida do U marca o movimento de observar, observar, observar, convidando a um mergulho que compreende: (1) suspender velhos hábitos de julgamento e ver com novos olhos; (2) redirecionar a atenção – sentir o que está à nossa volta; e (3) deixar ir os velhos padrões.

A base, ou parte mais inferior do U, marca o movimento de retirar-se e refletir, o que abrange a etapa de ‘presencing’ (termo em inglês criado por Otto Scharmer para designar o estado de presença + sensibilidade), na qual é possível silenciar, refletir sobre o que foi percebido na descida, e permitir que o saber interior venha à tona (4).

Finalmente, a subida do U marca o movimento de agir, explorar o futuro por meio do fazer, o que inclui: (5) cristalizar a essência do que está para emergir – uma visão, uma intenção; (6) prototipar – criar aquilo que é possível no momento, algo pequeno, rápido e espontâneo, capaz de gerar rapidamente um retorno ou feedback daquilo que precisa evoluir na ideia; e (7) realizar, atuando de um novo lugar, com maior potencial para verdadeiras mudanças.

Na seção Drops, assista à videoaula em que o professor Wilson Nobre, fundador do Fórum de Inovação da FGV-Eaesp, conta como a Teoria U surgiu, o que propõe, e como tem sido aplicada no Brasil e no mundo.