Por Bruno Toledo

O monitoramento da qualidade da água é deficiente ou inexistente em muitos estados brasileiros, com problemas sérios de capacidade técnica ou de representatividade temporal e espacial dos dados. No nível empresarial, um mapa de indicadores busca cruzar dados na cadeia de valor, bacia e empresa com quantidade, qualidade e governança dos recursos hídricos

“A Terra é azul”, reagiu o cosmonauta soviético e pioneiro da exploração espacial, Yuri Gagarin, ao ver nosso planeta pela primeira vez do espaço, em abril de 1961, a cerca de 700 km de distância da superfície. A vastidão azul da esfera terrestre observada por Gagarin reflete a dimensão da presença de água neste planeta, que cobre cerca de 70% de sua superfície. Poucos elementos são tão vastos na Terra quanto a água.

Entretanto, apenas 1% está na forma de água doce e líquida e, não bastasse isso, essa pequena fatia distribui-se de forma muito desigual pelo planeta (saiba mais no quadro abaixo). Isso torna evidente a necessidade de administrar a utilização e a conservação desse recurso natural da melhor maneira possível. No contexto da mudança do clima e da intensificação dos eventos climáticos extremos, a questão torna-se ainda mais crucial e desafia gestores públicos e privados a desenvolver e aperfeiçoar instrumentos para acompanhar a quantidade, a qualidade, o uso e o reúso da água, além do impacto dos diversos tipos de consumo sobre a disponibilidade hídrica futura.

Nunca é demais lembrar

A pequena parcela de água disponível para o consumo humano está distribuída de maneira bastante desigual sobre o globo. De acordo com as Nações Unidas, 60% da água doce disponível no mundo está concentrada em apenas nove países: Brasil, Rússia, China, Canadá, Indonésia, Estados Unidos, Índia, Colômbia e Congo. Mesmo no caso brasileiro, que podemos considerar privilegiado no planeta (12% das reservas hídricas globais estão no País), os recursos hídricos também estão dispersos de modo desproporcional: a Bacia Amazônica, que reúne menos de 5% da população brasileira, concentra quase 80% da água do País.

 Desafios para o monitoramento no Brasil

Apesar de ser um tema de repercussão global, a gestão hídrica deve ser tratada no nível local. No caso brasileiro, esse desafio aumenta quando consideramos a dimensão e a complexidade do território nacional. Por isso a importância dos indicadores, que são ferramentais para monitorar e avaliar a oferta e a qualidade da água, além dos impactos de sua escassez. Para saber o que esses dados revelam, acesse o conteúdo sobre a situação atual de águas no País.

Com o objetivo de mapear a quantidade e a qualidade dos recursos hídricos superficiais e subterrâneos em todo o território nacional, a Rede Hidrometeorológica Nacional (RHN) conta com mais de 20 mil estações pluviométricas e fluviométricas espalhadas por todas as bacias hidrográficas do País. De acordo com a Agência Nacional de Águas (ANA), essas estações geram dados hidrológicos que permitem analisar a situação de cada bacia, como a quantidade de chuva, a vazão de rios e a qualidade da água, e a série histórica de dados da RHN já reúne informações das últimas três décadas – quanto maior o período de registros, mais confiáveis tendem a ser as séries de dados e as estimativas feitas com base nelas.

A grande extensão territorial a ser coberta pela RHN é uma questão permanente para o trabalho de monitoramento. Por exemplo, a distribuição das estações pluviométricas e fluviométricas do sistema é desigual entre as bacias, uma vez que algumas concentram mais unidades de monitoramento do que outras. Das estações gerenciadas pela ANA (cerca de 4,6 mil, entre pluviométricas e fluviométricas), cerca de um terço delas concentra-se em duas bacias – Paraná (856) e Amazonas (765).

Outro ponto é a gestão de cada estação: a operação e a manutenção são realizadas por numerosas organizações públicas e privadas em diferentes áreas operacionais. Além da ANA, diversos órgãos estaduais e federais, empresas do setor elétrico, indústrias e mineradoras, e empresas de saneamento também administram estações da RHN no Brasil. A principal parceira da ANA na gestão das estações é a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), empresa pública ligada ao Ministério de Minas e Energia.

Para facilitar a obtenção dos dados das diferentes estações em todo o País, a Rede foi modernizada nas últimas décadas com a implementação de plataformas de coleta de dados (PCD) e transmissão por telefonia móvel ou satélite. As PCD acompanham a situação hidrológica em bacias consideradas de “interesse estratégico” para o Brasil, gerando dados e informações que também alimentam a rede de alerta de eventos hidrológicos extremos.

Os dados coletados pelas PCD são acompanhados em tempo real nas Salas de Situação da ANA – centros de gestão de situação crítica em que especialistas de diferentes áreas apoiam a tomada de decisão na gestão de recursos hídricos e em articulação com os órgãos da Defesa Civil. Segundo a ANA, havia aproximadamente mil estações automáticas em operação gerenciadas por ela em 2016, das quais 650 possuíam sistema de transmissão de dados de satélite ou telefonia celular.

Complementando o monitoramento convencional, a RHN também realiza o monitoramento hidrológico por satélite de rios e lagos de algumas bacias do Brasil, analisando a quantidade (nível dos rios por radar) e a qualidade (estimativas de sedimentos, clorofila e turbidez) da água.

Os dados obtidos em cada estação estão disponíveis no Sistema de Informações Hidrológicas (HidroWeb), vinculado ao Sistema Nacional de Informações sobre Recursos Hídricos (SNIRH). Segundo a ANA, mais de 3 milhões de fichas de campo estavam disponíveis no banco de dados em 2016 para consulta aberta.

Além de monitorar a quantidade, a RHN também estima a qualidade da água disponível no Brasil. De acordo com a ANA, a rede contava em 2016 com mais de 1,6 mil pontos de monitoramento de qualidade de água em todo o País, acompanhando parâmetros básicos como pH, temperatura, oxigênio dissolvido (OD), turbidez e condutividade.

Alguns governos estaduais também desenvolveram redes de monitoramento, geralmente concebidas para detectar tendências em locais estratégicos e problemas de qualidade existentes ou potenciais. Essas redes estaduais operam de forma independente, produzindo dados com frequências de coleta e parâmetros próprios.

No entanto, o monitoramento da qualidade da água é deficiente ou inexistente em muitos estados, com problemas sérios de capacidade técnica ou de representatividade temporal e espacial dos dados. Por isso, o governo federal busca articular novas iniciativas com os Estados, como o Programa Nacional de Avaliação da Qualidade das Águas (PNQA), a Rede Nacional de Monitoramento de Qualidade da Água (RNQA) e o Programa de Estímulo à Divulgação de Dados de Qualidade de Água (QualiÁgua).

Além das águas superficiais, o monitoramento da situação dos recursos hídricos também contempla as águas subterrâneas, armazenadas nos aquíferos e lençóis freáticos. De modo geral, o acompanhamento de águas subterrâneas no Brasil ainda é incipiente, considerando questões de natureza técnica e legal que dificultam a estruturação de um sistema similar ao que existe para monitorar as águas superficiais.

Do ponto de vista legal, os estados têm domínio em matéria de águas subterrâneas, mas são poucos os que desenvolveram redes de monitoramento. A experiência pioneira no País é de São Paulo, que desde 1990 opera uma rede que acompanha 180 poços a partir de parâmetros físicos, químicos e biológicos, com frequência semestral. Nos últimos anos, outros estados estruturaram programas similares, como Rio Grande do Norte, Distrito Federal e Minas Gerais.

No plano federal, a CPRM opera o Sistema de Informações de Águas Subterrâneas (Siagas), que armazena e disponibiliza dados e informações georreferenciadas sobre uma parte dos poços existentes no Brasil. Desde 2009, a CPRM implementa a Rede Integrada de Monitoramento das Águas Subterrâneas (Rimas), com o objetivo de medir diariamente o nível de água dos aquíferos, além de monitorar pontos como condutividade elétrica e análise química.

Um possível avanço no acompanhamento dos recursos hídricos subterrâneos pode ser o estabelecimento da Rede Nacional de Monitoramento Integrado Qualitativo e Quantitativo das Águas Subterrâneas, que teve suas bases definidas pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos em 2010, mas que ainda não saiu do papel.

Indicadores na gestão empresarial

Por conta da mudança do clima, em diversas regiões do País os índices pluviométricos estão sofrendo uma gradativa e intensa redução desde 2012, principalmente nas regiões Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste, segundo a ANA. Tal realidade traz à tona a necessidade de fortalecer práticas de gestão compartilhada que vão além da remediação ou da reação à escassez. Nesse sentido, as empresas são atores importantes para implementar uma gestão mais eficiente dos recursos hídricos.

No entanto, a preocupação da iniciativa privada com seus impactos e vulnerabilidades relacionados ao uso da água é relativamente recente. Um episódio importante para aumentar a atenção e o envolvimento das empresas no tema foi a crise hídrica vivida pelo Sudeste brasileiro entre 2015 e 2016: a restrição do abastecimento de água afetou especialmente os setores consumidores intensivos de água.

A produção industrial no estado de São Paulo chegou a cair 8,7% no primeiro semestre de 2015 por conta da crise hídrica, apontou um relatório publicado pelo Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS), Sitawi e GIZ em 2016.

Mais do que a redução da produção, situações de estresse hídrico podem acarretar impactos negativos para a competitividade de uma empresa, como o aumento nos custos de energia e matéria-prima, queda na demanda, redução no valor de ativos e ambiente insalubre de trabalho, entre outros problemas.

Para reduzir os riscos associados à vulnerabilidade hídrica e melhorar suas práticas de gestão, a iniciativa privada brasileira busca caminhos para mensurar e monitorar a situação do seu uso de água e o impacto de sua operação sobre a disponibilidade futura desse recurso. Um exemplo disso é o trabalho desenvolvido pelas Iniciativas Empresariais (iE), do FGVces, que reuniu um grupo de 21 empresas especificamente em torno dos desafios e possibilidades para a gestão empresarial de recursos hídricos, desenvolvido entre 2016 e 2017 (mais aqui).

No que diz respeito ao monitoramento, um esforço importante da iniciativa foi a construção de um Mapa de Indicadores, para orientar as organizações a identificar informações relevantes para a tomada de decisão e gestão conscientes em recursos hídricos, conectando-as com os processos gerenciais, e evidenciar as lacunas de disponibilidade e acessibilidade dessas informações.

O mapa visa ainda a ajudar as empresas a lidar com a complexidade da gestão da água na prática, que se desdobra na dificuldade de definição e/ou harmonização de conceitos e indicadores quantitativos e qualitativos relacionados a questões como uso, consumo, disponibilidade, escassez, vazão, governança, entre outros.

A partir de um mapeamento de referências em indicadores e bases de relato empresarial, o grupo de trabalho das iE organizou uma matriz com os indicadores mais relevantes para a gestão integrada dos recursos hídricos. Em seguida, tais indicadores (ver abaixo) foram cruzados entre os níveis (cadeia de valor, bacia e empresa) e as dimensões de gestão (quantidade, qualidade e governança) dos recursos hídricos.

Níveis para a gestão de recursos hídricos

Cadeia de Valor

Fornecedores e clientes com os quais a empresa tem relação direta ou indireta.

Bacia

Escopo imediatamente externo aos limites da empresa. Abarca a atuação da empresa no território, sua relação com outros atores aí presentes, e seus desdobramentos para a saúde da bacia.

Empresa

Processos produtivos e gerenciais, atividades e fluxos de comunicação e recursos que acontecem dento dos limites da organização.

Dimensões da gestão de recursos hídricos
Quantidade de água

Relacionada ao volume de água disponível demandado e suas relações com diferentes parâmetros.

Qualidade de água

Qualidade da água disponível demandada, fatores de influência sobre a qualidade e parâmetros de análise.

Governança hídrica

Trata-se de mecanismos, sistemas e práticas adotados para “governar” os recursos, que influenciam o acesso, a distribuição, o uso e a gestão hídrica.

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Com base nessa organização, o mapa foi estruturado com o objetivo de ampliar a visão sobre os indicadores e as informações que deveriam ser monitorados pelos gestores empresariais, alimentando a reflexão sobre a maturidade e os próximos passos para a gestão hídrica dentro da organização. Sua primeira versão estará disponível em breve na página da iE e no site do FGVces.