Por Cíntya Feitosa

Informação científica não falta para embasar ações de adaptação à mudança do clima. O problema é traduzir o “cientifiquês” para a língua dos tomadores de decisão, que precisam entender os riscos para a sociedade e para a economia

Um dos fatores de maior sensibilidade quando se fala em mudança global do clima é a gestão e disponibilidade de recursos hídricos, não só em quantidade, mas em qualidade. Os cenários com base em modelos climáticos sobre o que pode acontecer daqui para a frente vão desde escassez severa a aumento do risco de inundações, deixando os gestores públicos e os do setor privado em um mar de dúvidas ao se depararem com a necessidade de tomar decisões para enfrentar a questão. E isso piora pelo fato de o problema parecer estar no futuro, mas as decisões precisam ser tomadas desde já.

A dificuldade não se dá necessariamente por falta de informação científica. O problema é traduzir o “cientifiquês” para a língua dos tomadores de decisão, que precisam entender os riscos associados à mudança do clima para a sociedade e para a economia a fim de embasar o planejamento. Mesmo que o acordo global sobre o clima celebrado em 2015 seja cumprido milimetricamente (saiba mais na edição de P22_ON sobre gestão de emissões) e até se forem tomadas medidas adicionais, alguns efeitos do aumento da temperatura média da Terra não poderão mais ser evitados. Mas podem, sim, ser menos drásticos, conforme a adoção de medidas de adaptação.

A gestão da incerteza é inerente ao planejamento relacionado à adaptação, uma vez que os cenários contemplam diversas possibilidades. E, como mencionado no Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima (PNA), a água, por sua natureza, deve ser o primeiro meio pelo qual a mudança do clima será percebida. Também por sua natureza, exige preparação e planejamento. Como fazer?

A “tradução” das informações é, por si só, uma primeira medida de adaptação, levando ciência e gestão à mesma sala para que medidas sejam de fato adotadas. Este é o objetivo de plataforma recém-lançada no Brasil, a AdaptaClima. É como uma “rede social” qualificada e especializada no tema, com informações abertas a pesquisadores, sociedade civil e gestores públicos ou do setor privado.

A plataforma reúne conteúdo de acordo com setores priorizados no PNA e também sobre temas apontados como relevantes por organizações que participaram de sua construção, conduzida pelo Ministério do Meio Ambiente e pelo Centro de Estudos em Sustentabilidade (FGVces) da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV Eaesp). Um deles é a água, que tem influência sobre todos os outros.

A recomendação do PNA é que, ao planejar a infraestrutura hídrica e a alocação de água, antes de tudo é preciso considerar que provavelmente padrões hidrológicos do passado não se repetirão. Isso pode exigir obras de grande porte, como barragens, reservatórios, estações de bombeamento, poços… Em razão do alto custo das obras de, o planejamento deve estar alinhado a boas informações sobre cenários climáticos.

O plano sugere medidas a serem adotadas em relação aos recursos hídricos em diferentes contextos. Boa parte delas já seria benéfica mesmo em um cenário sem mudança do clima, como incremento de eficiência. São conhecidas como medidas no-regret, ou seja, em que não há perda de investimentos que provoque um arrependimento. As primeiras medidas a serem adotadas são as que apresentam essa característica.

Entre as recomendações para a agricultura estão a substituição de tecnologias de irrigação por métodos mais eficientes no uso da água e energia; a promoção da conservação e o aumento da infiltração em áreas de recarga dos aquíferos; o aumento de investimento em medidas de conservação e recuperação de áreas naturais; estímulos a práticas agrícolas que reduzem o uso de água e de sistemas agrícolas menos hidrointensivos, por exemplo o sistema agroflorestal.

Nas cidades as recomendações vão desde investimento em coleta e tratamento de esgoto e redução de perdas, com racionalização do uso e monitoramento nos mananciais, até obras de grande porte. Uma outra saída é encontrar alternativas para conviver melhor com a variabilidade natural do clima, incluindo seus extremos. Um exemplo citado na AdaptaClima é o conceito Room for River (espaço para o rio), da Holanda, que leva em conta a variabilidade da vazão do rio e simplesmente deixa espaço para que aconteçam as cheias, que devem passar a ser mais frequentes e maiores.

Para energia, a recomendação é a integração de usos múltiplos nos reservatórios – atendendo com um mesmo reservatório, por exemplo, demandas de abastecimento, irrigação, energia e até de lazer. E, na indústria, são medidas de eficiência, como investimento em tecnologias mais eficientes, além do estímulo ao uso racional e ao reúso.

Em geral, as medidas de adaptação são muito associadas a programas desenvolvidos no âmbito do poder público, quando na verdade devem ser também uma preocupação do setor privado, pelos riscos associados aos negócios. E são os mais variados: desde a impossibilidade de fornecimento de matéria-prima por perdas na cadeia de suprimentos, decorrentes de secas, por exemplo, até inundações em pontos de venda.

Assim como no setor público, o primeiro passo para os gestores de empresas é analisar cenários e priorizar suas medidas de acordo com a efetividade e o custo de cada uma. Para isso, esta ferramenta desenvolvida pelo FGVces apresenta o passo a passo para o planejamento, além de quatro casos de aplicação em empresas de diferentes setores.

O custo da seca no Semiárido Brasileiro

Foto: Daniel Tha
Foto: Daniel Tha

No Brasil, algumas regiões que historicamente já sofrem com a escassez podem ver sua situação se agravar. É o caso da Região Nordeste, em especial do Semiárido Brasileiro. A região completou em 2017 seu sexto ano de seca – a mais longa da História, de acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Desde 2012 não chovia em quantidade suficiente nos meses em que deveria haver chuva abundante. Se, no presente, os gestores já encontram dificuldades para planejar e executar ações que lidem com a variabilidade climática natural, a incerteza é ainda maior quando se trata de medidas de adaptação a cenários futuros agravados pela mudança global do clima.

Contratado pela Agência Nacional de Águas (ANA), o FGVces realizou um estudo de avaliação de custo-benefício de medidas de adaptação na Bacia do Rio Piancó-Piranhas-Açu, que compreende parte dos estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte (assista a videoaula aqui). Os pesquisadores também calcularam o valor aproximado do custo da seca atual: cerca de R$ 3 bilhões entre julho de 2012 e julho de 2017. De acordo com os novos dados do Inmet, a seca acabou e a previsão para este ano é de chuva acima da média.

A região é uma das mais suscetíveis aos riscos da alteração no clima, e, em condições normais, já precisa enfrentar extremos de seca e chuva, embora os períodos de estiagem sejam muito mais frequentes. Analisando a série histórica de vazões para a bacia, os eventos muito secos foram observados em 55% do tempo. Mais de 70% das modelagens analisadas apontam a tendência de períodos secos ainda mais secos e mais frequentes. Os modelos são inconclusivos sobre cenários futuros com períodos muito chuvosos.

Com o objetivo de analisar medidas para adaptação da região a esse provável “novo normal”, o estudo avalia, num rol de medidas já planejadas ou frequentemente consideradas no planejamento hidrológico e que fazem sentido no contexto da bacia, quais seriam as mais custo-benéficas, em um horizonte de 50 anos. Além disso, quantifica a possível perda econômica decorrente da seca.

A pesquisa partiu da caracterização da bacia e do risco físico ao qual está submetida, ou seja, cenários de distribuição e disponibilidade hídrica, tendo em vista alterações nos padrões meteorológicos, estimando em seguida a magnitude da perda econômica esperada associada a esses cenários. Com essas informações, foi possível analisar a resposta das medidas de adaptação em potencial e seu custo-benefício.

A análise baseou-se em modelos climáticos que compreendem a vazão no passado e estimam a vazão futura da bacia mantendo os níveis históricos e, também, agravados pela mudança do clima. Incluiu-se ainda um cenário que repete os padrões de vazão historicamente observados na região, sem levar em conta os efeitos da mudança global do clima. Mesmo nesse caso, improvável, já haveria perdas decorrentes de seca. O cenário extremo de seca chega a prever períodos de até sete anos consecutivos de escassez hídrica. Além da óbvia correlação com a disponibilidade de água na região, os resultados econômicos não são desprezíveis: as perdas decorrentes da seca podem chegar a R$ 7,8 bilhões em 50 anos.

Nesse contexto, o estudo analisou 18 medidas (neste link, ver Apêndice – Ficha de resultados de medidas de adaptação), das quais 8 foram consideradas custo-benéficas, ou seja, apresentam benefício associado, que corresponde às perdas evitadas, maior que seu custo de implantação. As oito estão listadas abaixo, e as primeiras são as que têm a melhor relação custo-benefício: em ordem decrescente de custo-benefício associado:

  • Projeto de Integração do Rio São Francisco (PISF): o projeto, que envolve a transposição do São Francisco, tem como objetivo final o aporte de vazão para cobrir déficits hídricos de todos os usuários da bacia.
  • Construção de barragens subterrâneas em lotes rurais: barramentos subterrâneos que elevam o nível freático, constituindo-se em reservatório que permite a retirada de água para diferentes usos rurais.
  • Perfuração de novos poços nas regiões de bacias sedimentares: perfuração de poços para atendimento de usos difusos no meio rural nas regiões de bacias sedimentares.
  • Reúso de efluentes na indústria: implantação em larga escala de estações de tratamento de efluentes industriais compactas.
  • Barragem de Oiticica e eixo de integração: construção de novo reservatório e implantação de eixo de adutoras.
  • Simulação do manejo eficiente das técnicas de irrigação: o manejo eficiente da irrigação envolve aplicar somente a quantidade necessária de água por meio do uso de sensores.
  • Diferenciação da tarifa de água a partir de mínimo per capita: readequação das tarifas praticadas, com a redução da quantidade de consumo sujeita a tarifa mínima dos atuais 10m³/mês para 5,26 m³/mês.
  • Redução de perdas na distribuição de água em áreas urbanas: redução das perdas na rede até o atingimento de meta estabelecida no Plano Nacional de Saneamento Básico para a Região Nordeste (33% de perdas).

Planejamento integrado: um quebra-cabeça

Uma nova fase avalia a associação de medidas, uma vez que o planejamento se dá de forma integrada. Para essa parte do estudo estão agrupadas ações de infraestrutura, que consistem em grandes obras com alto potencial de impacto na redução do déficit hídrico da bacia; as comumente recomendadas, quase sempre priorizadas no planejamento, tais como perfuração para exploração de água subterrânea, construção de reservatórios de grande porte, redução das perdas na rede urbana de distribuição de água e do desperdício na irrigação; além das opções no e low-regret, e também as de baixo custo, num contexto de capacidade de investimento limitada. Nesse caso, foram selecionadas aquelas que, dentro das opções no e low-regret, demandam baixo investimento, com objetivo bastante rural.

É um quebra-cabeça: algumas das medidas avaliadas em arranjo, se adotadas isoladamente, não são custo-benéficas. Mas, associadas, podem levar à redução de perdas, sobretudo porque beneficiam regiões diferentes da bacia. Muitas delas miram também na eficiência da distribuição de recursos. Por exemplo, em infraestrutura, algumas decisões já tomadas são custo-benéficas juntas, como o PISF e o a Barragem de Oiticica. O melhor arranjo de integração com essas medidas seria incorporar também ações para redução de perdas em trânsito através da adução paralela aos leitos de rios.

O arranjo nas ações comumente recomendadas seria a instalação de poços, que se concentram nas áreas rurais e de formação sedimentar da bacia, ao lado da Barragem de Oiticica, que atende à região do Seridó, com grandes déficits hídricos. A modernização de técnicas ineficientes e a adoção do manejo da irrigação, que representam o maior consumo de água na região, permitiria aumentar a disponibilidade para os demais usuários. Por fim, a redução de perdas na rede de distribuição de água contribui para reduzir os altos índices de desperdício nas zonas urbanas.

As medidas no-regret também apresentam complementaridades entre si e resultados diferentes, dependendo do arranjo, aumentando a resiliência e a oferta de água. As recomendações são robustas, ao prever até mudanças de alocação dos recursos hídricos de um setor menos produtivo economicamente para um mais rentável, sem que implique perdas econômicas. Também há arranjos em que, pelo aumento de disponibilidade por outras fontes, seria possível reduzir a exigência de aporte do São Francisco – e então essa medida também fica mais econômica, com redução dos volumes de água bombeada.

Em resumo, não há resposta simples. A gestão das incertezas é a chave para o planejamento, mas isso não significa adotar todo o pacote de medidas possíveis. É preciso considerar a ciência e analisar a viabilidade econômica e benefícios sociais entre as ações possíveis. Uma coisa é certa: o custo da inação é bem mais alto.