Por Amália Safatle

Ampliar a oferta de água não basta, é preciso também saber gerir bem a demanda. Uma das estratégias de gestão que tem ganhado corpo é lançar mão de instrumentos econômicos para sinalizar a escassez e a necessidade de aumentar a eficiência no uso

A forma mais comum de lidar com problemas associados à disponibilidade de água tem sido expandir a oferta, em geral por meio de obras de infraestrutura, como construção de novos reservatórios e transposição da água de um lugar para outro.

Mas cenários de incerteza, que apontam para maior ocorrência e intensidade de eventos climáticos extremos – ao mesmo tempo que o consumo tende a crescer –, mostram que aumentar a oferta de água não basta. É preciso também saber gerir bem a demanda.

Como fazer isso? Uma das estratégias de gestão que tem ganhado corpo é sinalizar a escassez e a necessidade de ganhar eficiência no uso da água por meio de instrumentos econômicos – tais como os mercados de direitos de uso da água, a alocação negociada e os bancos públicos de água. Embora presentes em alguns países como Estados Unidos, Austrália, Chile e Espanha, além de projetos pilotos na China e no México, esses mecanismos ainda são pouco conhecidos no Brasil.

Com o intuito de ampliar o conhecimento sobre esse tema de fronteira, trazê-lo para a realidade brasileira e possibilitar o debate sobre a sua aplicação, pesquisadores do Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV-Eaesp (FGVces) produziram um profundo estudo, com apoio da Agência Nacional de Águas (ANA), intitulado Instrumentos Econômicos Aplicados à Gestão de Recursos Hídricos: caminhos para sua adoção em situações de conflito pelo uso da água no Brasil.

Foram objeto de pesquisa os mercados de direito de uso de água na Bacia de Murray-Darling (Austrália), na Bacia do Rio Colorado (EUA), e na Espanha; além do banco de água do Arizona (EUA); e transferências de água na Califórnia (EUA).

Gustavo Velloso Breviglieri, um dos autores do estudo, contextualiza a pertinência do debate: “As chamadas low-hanging fruits estão acabando. É preciso buscar água cada vez mais longe, o que implica maiores custos financeiros e ambientais, além de usos não autorizados nos sistemas, uma que vez que o gasto com fiscalização fica proibitivo. Sem falar nos custos das próprias obras”, diz.

A equipe de pesquisadores, que também analisa a relação entre custo e benefício de medidas de adaptação no Semiárido – um dos locais mais afetados pela escassez hídrica no Brasil –, conclui que continuará faltando água na região, apesar da realização de obras de infraestrutura.

“Mesmo com o projeto de Transposição do Rio São Francisco, não haverá água suficiente para zerar o déficit”, afirma Breviglieri, referindo-se à Bacia Hidrográfica do Rio Piancó-Piranhas-Açu, nos estados do Rio Grande do Norte e da Paraíba.

Mas, segundo ele, diversas medidas de adaptação à mudança do clima podem ser impulsionadas, caso um instrumento econômico seja adotado. “Um sinal de preços motivaria a adoção de tecnologias mais eficientes pelos grandes irrigantes e pelo setor industrial”, diz o pesquisador (mais sobre adaptação aqui).

A função dos instrumentos econômicos é permitir que se faça o uso mais eficiente da água dentro do limite da bacia, considerando-se a sua sustentabilidade, ou seja, que a retirada de água não seja maior que a sua reposição.

O cap & trade da água

No caso da comercialização dos direitos, o mercado de direitos de uso de água funciona nos moldes do cap & trade de carbono. É fixado um teto, ou seja, um limite para o uso (cap), de acordo com a capacidade de autossustentação da bacia, e são comercializados os direitos (trade) entre quem usa menos água do que o permitido pelo direito de uso (outorga) e quem precisa do recurso, mas não tem a autorização de uso e fica em uma espécie de “fila de espera”.

O mecanismo acaba por estimular a busca de eficiência, por meio de melhor gestão e de inovações, ao mesmo tempo em que permite que mais agentes produtivos tenham acesso à água. Assim, o instrumento tende a gerar o maior valor econômico possível para a água na região da bacia, fortalecendo o desenvolvimento local.

Os mercados de direito de uso, em alguns casos, chegam a envolver o abastecimento urbano. No Colorado, por exemplo, quem mais compra direito de uso é a companhia de abastecimento. Na Califórnia também, com o intuito de atender a cidade de Los Angeles. Já na Austrália, embora permitida, a prática toca em questões políticas, pois há um entendimento de que isso gera conflito entre esferas (por exemplo, a “cidade pegando água do campo” e vice-versa). Com isso, a Austrália acaba investindo em plantas de dessalinização da água do mar, ainda que sejam bastante custosas, para garantir o abastecimento urbano.

Embora a literatura estrangeira use a expressão simplificada water markets, vale frisar que o objeto comercializado não é a água em si – posto que se trata de um bem inalienável –, e sim o direito de uso, concedido por entes públicos, por meio de outorgas ou qualquer título similar.

Além disso, nesses mercados, o setor público possui a importante função de garantir que os direitos de uso de água sejam bem definidos, seguros e que reflitam o consumo real de água pelos usuários. Os governos devem assegurar que nenhuma terceira parte seja prejudicada por determinada transação e podem prover informações acerca das condições hídricas esperadas, além de preços e volumes praticados no mercado, a fim de assegurar que indivíduos transacionem em condições de igualdade.

Apesar de a gestão de recursos hídricos ocorrer em nível de bacia, existe um Projeto de Lei no Senado (nível federal) que tem como objetivo oferecer segurança jurídica ao instrumento. O projeto altera a Política Nacional de Recursos Hídricos para priorizar o uso múltiplo e a alocação mais eficiente da água, bem como criar os mercados de direito de uso. Trata-se do PLS nº 495/2017, de autoria de Tasso Jereissati (PSDB-CE).

Acredita-se que muitos projetos piloto no Brasil hoje sejam inibidos em razão da insegurança jurídica, enquanto algumas iniciativas acabam ocorrendo de modo informal. Há relatos de produtores rurais no Rio Grande de Sul, por exemplo, que têm o direito de captar de uma barragem, mas, na medida em que não precisam da água, deixam para o vizinho a jusante, que os remuneram por fora do sistema de recursos hídricos.

A proposta do projeto de lei é que esse tipo de negociação seja regulamentada e passe a constar no plano de bacia. Um desafio é medir e comprovar que de fato se consumiu menos que os limites da outorga. Para usuários de menor porte, a fiscalização é ainda mais difícil.

Alocação, bancos públicos, PSA, cobrança pelo uso

Um outro tipo de instrumento é a alocação negociada, que já é praticada no Brasil, mas não envolve comercialização de direitos de uso (saiba mais neste vídeo). A agência responsável por conceder outorgas reúne os interessados para firmar um acordo entre todos sobre como dividir os direitos.

Já no caso de bancos públicos de água, em vez de agentes privados demandando água, é o Estado que demanda. Em momentos de escassez hídrica, o órgão público faz lances de compra a quem estiver disposto a vender direitos de uso. Esse tipo de iniciativa já ocorreu no Ceará, onde foi transferido recurso público a cada metro cúbico de água que o agente privado se dispôs a economizar.

Existe ainda programas de Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA), que, embora não estejam previstos na PNRH, podem ser considerados como instrumentos econômicos. A própria ANA possui um programa de PSA (o Produtor de Água) e recentemente lançou edital para contratação de especialista para auxiliar na sua adequação para o Semiárido Brasileiro (saiba mais sobre PSA e serviços ecossistêmicos nesta edição de P22_ON.)

Outro tipo de instrumento econômico é a cobrança por uso de água, já prevista na Política Nacional de Recursos Hídricos para sinalizar escassez, com o objetivo de indicar mudança de comportamento – reduzir desperdício e buscar eficiência.

Mas, nesse instrumento, o incentivo à redução de consumo ainda não está tão claro. Isso porque, atualmente, a cobrança é exercida sobre o volume outorgado e não sobre o que se consome efetivamente. Embora o mecanismo estimule rever a outorga para baixo, o usuário nem sempre o faz, pois muitas vezes prefere garantir o limite de uso para uma eventual necessidade de ampliar o consumo no futuro.

Ainda existe outra questão: o comitê de bacia, órgão deliberativo que autoriza cobrança, inclui os usuários. Esse formato de governança acaba inibindo a aprovação da medida, pois o próprio usuário participa da definição de quanto vai pagar. Hoje, a cobrança é praticada por poucos comitês e com valores que apenas custeiam as operações do órgão. Saiba mais sobre a cobrança pelo uso de recursos hídricos no Brasil neste relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Uma desvantagem da cobrança pelo uso, ante outros instrumentos, como o mercado de direito de uso, é a dificuldade de reduzir o consumo da bacia como um todo. Pelo mercado, é possível limitar o cap facilmente. Já com a cobrança de uso, fica mais difícil.

O que diz a teoria econômica

A água é um bem econômico propenso à situação conhecida como Tragédia dos Comuns e ao surgimento de externalidades negativas. Na Tragédia dos Comuns, um bem tende a ser superexplorado quando o consumo de um indivíduo reduz o dos demais (o que é conhecido como “recurso rival”) e, mesmo sem pagar pelo bem, o indivíduo não pode ser impedido de acessá-lo.

Diante disso, direitos de uso claramente estabelecidos e um sistema de preços são fundamentais para direcionar o melhor uso do bem, com geração de valor econômico. “Os sinais oferecidos pelos preços, se adequados, podem se configurar como incentivos claros para que os indivíduos decidam quanto e como utilizar um recurso escasso de forma socialmente ótima”, escrevem os autores do estudo.

Segundo eles, a evidência empírica também sugere que políticas ambientais e voltadas para recursos naturais baseadas em instrumentos econômicos são mais custo-efetivas do que abordagens marcadas pelo comando e controle, ou seja, determinadas pela legislação e fiscalizadas pelo poder público. “Tentativas de resolver problemas ambientais sem levar em consideração as forças de mercado correm considerável risco de não alcançar seus objetivos”, concluem.

No entanto, a implementação desses mecanismos depara-se com uma série de obstáculos que advêm das próprias características da água: um bem essencial à vida, que não possui substitutos próximos e nem pode ser produzida ou manufaturada sob demanda; e está sujeita a controle do monopólio público ou privado, à regulação governamental, ao racionamento e ao controle de preços.

Abundante em certos lugares e escassa em outros, a água possui pequeno valor unitário e seu transporte e extração são difíceis e caros. Facilmente poluível, mas de tratamento difícil. Seu consumo ou uso podem não ser claramente mensuráveis e constitui um tema sensível e de interesse de todos.

“Resumindo, água é um recurso fugitivo com quantidade, qualidade, localização e disponibilidade incertas”, dizem os pesquisadores. Por definição, recursos fugitivos, no caso dos recursos naturais, são aqueles perdidos caso não sejam capturados, ou para os quais os fluxos são consideravelmente maiores que os estoques.

Por não ser perfeitamente divisível, a água transpassa diversas fronteiras e esferas de influência, o que exige uma gestão coletiva e integrada, tanto do ponto de vista territorial como setorial, interagindo com energia e alimentos. A abordagem da plataforma Energy-Water-Food Nexus busca justamente identificar as sinergias e possíveis tensões decorrentes das políticas entre os setores (mais aqui).

A gestão da água ainda precisa ser dinâmica o suficiente para responder a interações entre o crescimento da população, a intensificação de sua utilização, os usos múltiplos e por vezes conflitantes, a mudança climática e as modificações no seu ambiente natural.

O caso brasileiro

Levando em conta todos esses desafios e peculiaridades, os pesquisadores buscaram confrontar o embasamento teórico e as experiências internacionais com o contexto brasileiro.

Foi investigada a viabilidade legal e administrativa da implantação dos instrumentos econômicos, assim como ouvidas opiniões de especialistas em recursos hídricos do governo, academia, órgãos de cooperação internacional e representantes de usuários de água.

Com base nisso, concluiu-se que existem cinco arranjos possíveis para o caso brasileiro: transferências conforme o termo de alocação negociado em momentos de crise; transações a partir de um ponto de captação; bancos de água públicos; criação de títulos de alocação anual transacionáveis; e flexibilização das regras atuais para transferência de outorgas.

Como a própria água ensina, ao correr em seus cursos, não existe solução única. Os caminhos podem ser muitos, fluidos e sinuosos. O que a água espera de nós e de nossas políticas é alguma flexibilidade e muita criatividade.