Empresas mostram que o olhar cuidadoso para o capital natural durante o ciclo de vida de seus produtos beneficia também os negócios

Por Magali Cabral

Os recursos naturais compõem um dos capitais relevante para as empresas, não somente nas suas operações, mas também em toda a sua cadeia produtiva. Deixar simplesmente que a engrenagem, no modelo business as usual, se encarregue do perfeito funcionamento dos processos envolvidos, desde a origem até o descarte dos seus produtos, pode representar riscos importantes e até pode ter um efeito bumerangue – a conta acabará chegando à sua empresa. Atentas ao desafio, várias empresas estão inserindo em seus negócios o olhar para outras etapas do ciclo de vida de seus produtos, seja para reduzir riscos operacionais e reputacionais, seja para reduzir externalidades negativas provocadas por suas atividades.

Três delas foram selecionadas na chamada de casos Gestão Empresarial de Capital Natural: a Casa Jaya, um restaurante vegano e espaço ecocultural, que traz uma proposta inusitada de compostagem de seus próprios resíduos orgânicos, associada a um modelo bem particular de logística reversa; a AkzoNobel, indústria de tintas que está levando água de reúso aos seus látex e eliminando gradativamente a base solvente de seus esmaltes e vernizes; e a C&A, com o caso da camiseta básica de algodão desenhada para ser reciclada.

Do prato ao prato

O fascínio do biólogo Julio Avanzo Neto pelo processo transformador da compostagem fez da Casa Jaya, instalada no número 305, da Rua Capote Valente, no bairro de Pinheiros, em São Paulo, mais do que um bom restaurante e espaço de eventos culturais. Ele criou um novo modelo de negócios. “Fazer de algo que ninguém mais quer uma coisa com valor parece mágica”, diz ele. De fato, é fascinante como mágica ver os resíduos gerados na cozinha do restaurante se transformarem no composto orgânico que fará germinar os novos alimentos que, em um futuro breve estarão naquela mesma cozinha onde terá início mais uma jornada de produção.

Quando estavam começando o empreendimento, 10 anos atrás, entusiasmados com a ideia de fechar o ciclo de vida dos insumos orgânicos, os sócios da Casa Jaya conseguiram reunir um grupo de 12 restaurantes vegetarianos e veganos da região dispostos a separar e fornecer seus resíduos para compostagem. O composto seria feito em um sítio nos arredores de São Paulo e de lá iria para a horta de pequenos produtores da Região Metropolitana de São Paulo como parte do pagamento pelas verduras e legumes orgânicos que viessem a fornecer aos 12 restaurantes, e assim sucessivamente. “Juntos, criaríamos um clube de consumo de restaurantes fechando esse ciclo que eu chamo, talvez incorretamente, de logística reversa”, conta ele.

Avanzo encontrara o modelo de negócios dos seus sonhos. Mas o que ele não sabia é que, em São Paulo, é proibido transportar resíduos orgânicos pela cidade, a não ser por meio de uma empresa licenciada pela Autoridade Municipal de Limpeza Urbana (Amlurb). Ou seja, resíduo orgânico produzido na zona urbana de São Paulo tem de, obrigatoriamente, terminar seu ciclo de vida em um aterro sanitário. Com esse desfecho desanimador, terminava o primeiro episódio da história da Casa Jaya.

Até hoje, Julio Avanzo não se conforma: “A cidade gera, diariamente, 6.300 toneladas de resíduos orgânicos, totalmente compostáveis, que são sistematicamente dispostos em aterros sanitários, responsáveis pela geração de 14% de todo o gás de efeito estufa emitido no município”.

A essa altura, a única alternativa possível seria compostar o lixo orgânico no próprio local onde era gerado. Era isso ou nada. Perdia-se em escala mas ganhava-se em eficiência energética por concentrar toda a atividade em um mesmo local. O grupo transformou o que era uma pequena lanchonete em um bistrô. Além dos saborosos pratos veganos e de um bufê de saladas livres de adubos químicos e agrotóxicos, a cozinha gera 46 quilos diários de sobras (resíduos orgânicos) de comida que são diariamente transportados em baldes até os cilindros enfileirados sobre uma laje construída sobre a cozinha para essa finalidade.

A esse resíduo úmido gerado pelo restaurante, que é pesado todos os dias para monitoramento da evolução da redução de desperdício, mistura-se matéria vegetal (serrapilheira) seca fornecida pela Eletropaulo, por meio do Termo de Parceria Resíduo de Poda. “A compostagem em ambiente controlado, assim como na natureza, precisa de material rico em nitrogênio úmido e seco para fazer a compensação perfeita”, ensina Avanzo.

Semanalmente é feito o desmonte de 2 cilindros, e o composto é ensacado e destinado a pequenos agricultores fornecedores da Casa Jaya, mantendo o modelo de “logística reversa” de orgânicos pensado inicialmente. O maior desafio do projeto é a falta de espaço, sem o qual não é possível ter mais cilindros e dar mais tempo de processamento ao composto, o que agregaria valor ao produto.

Água para pintar

É compreensível que um pintor profissional continue usando esmaltes e vernizes apesar dos compostos orgânicos voláteis poluentes emitidos na fabricação. E se lhe fosse oferecida uma fórmula que substitui essa base solvente do esmalte e do verniz por água, com a garantia de um acabamento similar e 45% menos emissões de gases de efeito estufa? Será que ele trocaria de produto? Difícil saber. Mas a multinacional holandesa AkzoNobel, líder na fabricação de tintas, está tentando convencer pintores profissionais e consumidores com o seguinte argumento: “os novos produtos são melhores para o meio ambiente, têm secagem rápida, não tem cheiro, e ainda possuem a vantagem de não amarelar”, diz a coordenadora de Sustentabilidade da empresa, Flávia Yumi Takeuchi.

A proposta do projeto Água Essência da Cor, da AkzoNobel, é vender cada vez mais produtos à base de água e que usem cada vez menos o recurso hídrico. Mesmo com resistência por parte dos consumidores, até 2020 pelo menos 20% de toda a linha de esmaltes e vernizes terá essa característica, o dobro do volume atual. “O aumento do portfólio de produtos à base de água não significará um consumo maior desse recurso natural devido ao reúso do efluente tratado em nossa estação de tratamento. Até 2020, toda a água tratada será reusada na fábrica e nos produtos”, informa Takeuchi.

Outro ponto importante diz respeito ao custo das novas tintas. A coordenadora de sustentabilidade explica que as matérias-primas dos produtos à base de água são importadas e estão sujeitas a uma maior volatilidade de preço em relação às matérias-primas do base solvente. “Além disso, no ano passado, um dos fornecedores foi altamente impactado pelo Furacão Harvey, elevando ainda mais os custos”, comenta.

Segundo a coordenadora, para possibilitar as mudanças, foi construída uma estação de tratamento de efluentes que vai além do usual tratamento físico-químico e biológico. “Instalamos uma membrana de ultrafiltração, com poros tão pequenos que não passa vírus nem bactérias. Só passa sal. Não tem padrão de potabilidade, mas tem uma qualidade que pode ser utilizada para fazer tinta”, descreve. A intenção é fabricar tinta látex com agua de reúso. “Por enquanto, a produção é em escala-piloto, dependendo apenas de algumas burocracias para fazer o lançamento. Mas até 2020 todo o nosso látex será produzido com água de reúso.”

O endereço dessa iniciativa é a Reserva Tangará, uma propriedade de 70 hectares, no município de Mauá, Região Metropolitana de São Paulo, onde está instalada a fábrica da AkzoNobel. Toda a água consumida pela empresa é originária dali mesmo, seja de nascentes, seja da zona de recarga dos poços artesianos que abastecem a produção industrial. Os eucaliptos que cobrem a reserva estão gradativamente sendo substituídos por árvores nativas de Mata Atlântica com objetivo de melhorar a qualidade da água, prevenir incêndios (uma vez que a Mata Atlântica é mais úmida do que plantação de eucaliptos), formar corredor biológico, manter distância segura das comunidades vizinhas e melhorar a reputação da empresa.

Os três projetos da AkzoNobel possuem motivações diferentes, porém convergem na valorização do recurso hídrico e estão conectados à estratégia, já que a água é uma matéria-prima essencial para a empresa. “Não apenas buscamos diminuir os impactos ambientais, mas também dependemos deste recurso para a produção de tintas”, afirma Takeuchi.

Camiseta compostável 

Estima-se que a indústria global da moda produza 80 bilhões de peças de vestuário ao ano, sem contar o mercado informal. O ciclo de vida da maior parte dessa produção é linear, vai do berço ao túmulo. Ou seja, são produzidas, vendidas, usadas e reusadas até seguirem para os aterros sanitários. No ano passado, a C&A, uma das grandes varejistas mundiais quebrou essa rotina linear ao lançar na Europa, no México e no Brasil uma camiseta feita de matérias-primas consideradas nutrientes biológicos, criadas para serem reutilizadas, recicladas em novos produtos, ou compostadas com segurança.

A camiseta vem com Certificação nível Gold da Cradle-to-Cradle (C2C), que no inglês significa do berço ao berço, sugerindo a circularidade. Além de ter um fim de vida nobre, o produto é produzido com algodão orgânico (sem uso de fertilizantes e pesticidas), os corantes e tintas utilizados são seguros ao solo e à saúde dos funcionários envolvidos no processo de tingimento, a energia usada na fabricação é renovável e compensa as emissões de carbono, a água utilizada no processo de produção é tratada antes de retornar ao ambiente, e as pessoas envolvidas na confecção trabalham dentro das normas legais de seus respectivos países.

Em entrevista por e-mail e sem a identificação de um porta-voz, a C&A informou que até o momento foram introduzidas no mercado mais de 1,3 milhão dessas peças e que a aceitação do produto foi muito boa. “A demanda por uma produção mais sustentável já é uma realidade dentro deste mercado. Os consumidores têm cada vez mais consciência sobre os impactos socioambientais, cobram isso das empresas deste setor, e estão atentos às nossas iniciativas”, informaram.

Aqui no Brasil, as peças foram lançadas em setembro de 2017, e estiveram disponíveis em 30 lojas físicas, além do e-commerce. A receptividade do consumidor foi positiva, o que motivou a empresa a repetir o lançamento em abril deste ano, junto ao movimento #VistaAMudança, o conceito guarda-chuva de comunicação para a sustentabilidade da C&A.

A empresa listou os principais desafios para tornar a certificação C2C mais abrangente dentro de sua linha de produção, os quais vem sendo trabalhados em parceria com a Fashion For Good (instituição que estimula a adoção de boas práticas no mundo da moda). Faltam no mercado da moda: um número maior de corantes, tintas e produtos químicos certificados; alternativas para o elastano; poliéster livre de antimônio e poliéster reciclado; mais botões, zíperes, rebites e outros aviamentos com certificação. A empresa afirmou também que, para seguir em direção à moda sustentável, está promovendo o Good Fashion Guide da Fashion for Good, que ajudará os fornecedores que queiram desenvolver produtos com a certificação Cradle-to-CradleTM.

Questionada sobre metas para levar mais sustentabilidade à cadeia da moda, a empresa afirmou ter criado em 2015 uma Plataforma Global de Sustentabilidade, com metas até 2020, estruturadas em três pilares: produtos sustentáveis, rede de fornecimento sustentável e vidas sustentáveis. Disse também que em breve haverá mais lançamentos alinhados aos conceitos de economia circular.

Ao focarem o olhar para além de seus “muros”, a Casa Jaya, a AkzoNobel e a C&A estão promovendo um impacto positivo no ecossistema e nos atores empresariais que ainda não se deram conta de que sem circularidade não haverá continuidade.

Raio X das propostas

Camiseta desenhada para ser reciclada

Proponente: C&A – empresa privada de grande porte do setor de varejo

Data de início: setembro de 2017

Data de término: não aplicável

Local da iniciativa: Europa, Brasil e México

Investimento aproximado: não aplicável

Como gera valor para a empresa:

Por meio desta iniciativa, inédita no setor de moda, a empresa destaca-se pela inovação. O desenvolvimento do produto reúne parceiros que, juntos contribuem para a economia circular, reduzindo o impacto negativo do setor. Como o processo de certificação da peça demanda mudanças em sistemas de produção e aperfeiçoamento de técnicas, o legado é estendido ao fornecedor, que pode se empoderar da expertise adquirida e adotar técnicas de produção mais sustentáveis. Ao compartilhar os aprendizados pela cadeia de valor, a empresa entende que a geração de valor é para toda a indústria.

Como gera valor para o ecossistema e atores envolvidos:

As camisetas Cradle-to-CradleTM são feitas de algodão mais sustentável, com materiais e produtos químicos seguros e são produzidas de forma social e ambientalmente responsável. O tingimento é 100% atóxico, o que permite à camiseta se compostar quando deixar ser usada. A compostagem pode reduzir o volume de resíduos orgânicos de maneira significativa, ao mesmo tempo que o composto produzido pode ser utilizado na agricultura. A certificação Cradle-to-CradleTM, única realizada por terceiros, capaz de certificar produtos circulares, atesta a fonte das matérias-primas, os produtos químicos, a água ou energia utilizada na fabricação, a reutilização de materiais e as condições sociais na cadeia de valor.

Como se relaciona com outras iniciativas globais:

A iniciativa, que se alinha ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 12, sobre Produção e Consumo Sustentáveis, encontra-se no centro da estratégia global de sustentabilidade da companhia, incluindo também o trabalho sobre meio ambiente limpo na sua rede de fornecimento. A visão da empresa é integrar uma economia circular restaurativa, em que nada é desperdiçado na criação ou no descarte das roupas.

Compostagem de Resíduos Orgânicos e Logística Reversa

Proponente: Casa Jaya – empresa privada de pequeno porte do setor de alimentação e sustentabilidade

Data de início: 2/3/2011

Data de término: não aplicável

Local da iniciativa: Rua Capote Valente, 305, São Paulo (SP)

Investimento aproximado: R$ 10 mil

Como gera valor para a empresa:

Para o restaurante, a gestão ecologicamente adequada dos resíduos gera propósito ao projeto e valor para a imagem. Além disso, provoca reflexões para a equipe, os fornecedores e os clientes. Diversas práticas de redução do desperdício, como o aproveitamento integral dos alimentos, já resultaram em economia de mais de 10% do custo mensal com matéria-prima, sobretudo hortaliças e legumes. O composto produzido retorna à associação de produtores que, por sua vez, reduzem significativamente o custo mensal com insumos agrícolas e obtêm ganho de imagem.

Como gera valor para o ecossistema e atores envolvidos:

Na primeira fase da implantação do sistema, é produzida cerca de 1,5 tonelada de composto mensal. Isso representa redução de 1,3 tonelada de resíduos orgânicos de cozinha e 3 metros cúbicos de serrapilheira e poda da Eletropaulo, volumes que seriam destinados a aterros sanitários. Ao manejar esses resíduos em seu próprio espaço, a Casa Jaya beneficia esse material e o devolve para seus produtores e outros agricultores urbanos. A iniciativa estreita laços e promove relação de cocriação com os fornecedores, sobretudo os produtores orgânicos de frutas, legumes e verduras. Com isso, reduz custos para os envolvidos e gera consciência ecológica e novos modelos de relações comerciais. A iniciativa também contribui para fortalecer o movimento da agricultura urbana em São Paulo e, com a separação dos resíduos, facilita a triagem e coleta dos recicláveis pela cooperativa de catadores.

Como se relaciona com outras iniciativas globais:

A iniciativa está em acordo com a Política Nacional de Resíduos Sólidos, de 2012, e as recomendações do Plano de Gerenciamento de Resíduos Sólidos, de 2014. Outro marco considerado importante para a Casa Jaya é o Seminário “Compostagem na Cidade de São Paulo” na Câmara Municipal, em 2012. A iniciativa alinha-se ao projeto Composta São Paulo, em 2014, e aos Seis Objetivos da Compostagem, elaborados em 2017 sob inspiração dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

Água: essência da cor

Proponente: AkzoNobel – empresa privada de grande porte do setor químico

Data de início: 2017

Data de término: 2020

Local da iniciativa: Mauá (SP) 

Como gera valor para a empresa:

Com objetivo de vender mais produtos base água, promover ações de reúso, e conservar uma área da Mata Atlântica, a iniciativa gera valores intangíveis, que, embora não calculados ainda, reconhecem a água como matéria-prima essencial para a empresa. A dependência de recursos hídricos faz com que sejam desenvolvidas ações desde sua origem, fabricação e venda de produtos aos consumidores. Com o reúso da água, reduzem-se a dependência da extração e a geração de efluentes, diminuindo custos de tratamento – conta esta que deverá ser zerada até 2020. A empresa tem como estratégia liderar o movimento de transformação dos consumidores e pintores e pretende estabelecer-se como marca de soluções que traz mais benefícios ao meio ambiente e aos consumidores.

Como gera valor para o ecossistema e atores envolvidos:

A Reserva Tangará, mantida pela empresa e de onde extrai água para seus processos produtivos, representa quase 10% da área verde de Mauá. Em 2015, verificou-se que a Mata Atlântica da reserva, que continha eucaliptos, está se regenerando. Cerca de 2 mil crianças já visitaram Reserva em programas de educação ambiental. A Estação Reviver, voltada para o tratamento de efluentes da empresa, devolve ao ambiente água com qualidade superior, pois, além dos processos físico-químicos e biológicos convencionais, possui uma membrana de ultrafiltração que retém inclusive vírus e bactérias. Um dos principais impactos da AkzoNobel é a emissão de compostos orgânicos voláteis, que representam mais de 20% de sua pegada de carbono. Por isso, a empresa estimula o uso de produtos base água, que geram emissões 90% inferiores.

Como se relaciona com outras iniciativas globais:

A iniciativa está alinhada com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 6 (Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos), 9 (Construir infraestruturas resilientes, promover a industrialização inclusiva e sustentável e fomentar a inovação), 11 (Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis) e 15 (Proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da terra e deter a perda de biodiversidade).