Iniciativas nos diferentes biomas acumulam conhecimento e tornam-se referência para o aumento da escala da restauração ecológica no País

Por Sérgio Adeodato _ Foto: Hanna Tims/ Unsplash

Duas políticas públicas destacam-se no cenário brasileiro como referência em restauração florestal. Uma é municipal e largou na frente, reconhecida pelo pioneirismo que agora inspira novos modelos País afora. A outra, estadual, figura no pódio como maior iniciativa do gênero em curso no Brasil, já caminhando para fazer a diferença no desenvolvimento da economia regional.

São histórias e territórios diferentes, mas com pelo menos quatro características em comum: além da Mata Atlântica que compartilham, ambos os casos adotam um mecanismo financeiro de incentivo engajador, o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA); têm como principal motivação a garantia de disponibilidade hídrica; e, por fim, os dois avançam nos planos de ampliar a escala da reposição de árvores e seus benefícios – marcos que projetam o real potencial de experiências hoje existentes nos vários biomas brasileiros.

No município de Extrema (MG), o primeiro a despontar nacionalmente no tema, o Programa Conservador das Águas foi construído do zero, em 2005, quando no mundo se multiplicavam alertas da ciência para os riscos de escassez hídrica e da mudança climática, e existiam pouquíssimos exemplos de sucesso de soluções baseadas no que a própria natureza oferece.

Diante da preocupante degradação das microbacias do município e entorno, devido à longa história de impactos ambientais, o caminho foi criar uma política municipal para investimento público na proteção de nascentes, recuperação de matas na beira dos rios e promoção de práticas sustentáveis no campo. Com o diferencial de um instrumento inovador à época: o mecanismo de PSA como recompensa financeira a produtores rurais engajados no desafio de reduzir os danos e garantir os serviços ambientais de suas propriedades, em benefício de toda a sociedade.

“A iniciativa teve amplo apoio da população e alavancou o desenvolvimento econômico e social, com geração de empregos”, destaca o biólogo Paulo Henrique Pereira, o Paulinho, como é mais conhecido, secretário do Meio Ambiente de Extrema. Ele lembra que os efeitos vão além das porteiras dos sítios e das divisas do território municipal, porque os rios da região impactados por pastagens degradadas nutrem mananciais de outras cidades do interior e das duas maiores capitais brasileiras, São Paulo e Rio de Janeiro.

Com mais de 1 milhão de árvores plantadas até o momento, a política contribui diretamente na manutenção do ciclo hidrológico, com aumento da permeabilidade do solo e redução de sedimentos escoados para os rios. Dessa forma, estruturado como lei municipal, o programa atraiu parcerias de organizações ambientais e empresas. Em 2018, atingiu outro patamar com a criação da Política Municipal de Mudança Climática, prevendo receita com a neutralização de carbono, via restauração florestal, junto a empreendimentos privados que operam no município.

Com base no inventário municipal de gases de efeito estufa, além das empresas, também a população paga pelo plantio de árvores, por meio de diferentes tributos. Os 20 mil veículos da cidade, por exemplo, geram anualmente R$ 4 milhões em IPVA, dos quais 20% vão para a restauração florestal como forma de neutralizar emissões – valor suficiente para recuperar 53 hectares. Além dessa fonte, os recursos para investimento provêm de um percentual do IPTU e do ISS, como compensação do carbono emitido por residências, prédios e atividades de serviços em Extrema. Isso demonstra, diz Paulinho, que o modelo de restauração “consolidou-se no município como um projeto da sociedade”.

Segundo ele, em 2021, o Conservador das Águas receberá R$ 6,5 milhões para repasse às propriedades rurais. Os valores são investidos também em áreas prioritárias para restauração adquiridas pela prefeitura, no plano de conectar parques municipais por corredores biológicos. “O êxito vem da continuidade político-administrativa, da construção de confiança e do fortalecimento da gestão”, ressalta Paulinho, ao lembrar que tudo começou com “um Fusca velho, uma mula e R$ 20 mil”. Ele aponta o desafio atual: levar a experiência a um raio de maior abrangência, no programa Conservador da Mantiqueira, que envolve diferentes instituições e prefeituras e pretende recuperar 1,5 milhão de hectares nesta década, sob a liderança da The Nature Conservancy (TNC) e parceiros, entre os quais o WWF-Brasil.

Expansão capixaba

Além dos avanços em torno do exemplo de Extrema, o outro destaque no topo das referências brasileiras vem do Espírito Santo, onde o Programa Reflorestar, criado em 2008, inovou como política pública estadual contra os riscos na escassez hídrica, prevendo o repasse de royalties do petróleo para o pagamento de produtores que conservam florestas, protegem nascentes e restauram áreas degradadas. “Chegamos à Década da Restauração de Ecossistemas, das Nações Unidas, com muitos aprendizados, já em condições de aumentar a escala desse trabalho”, afirma o coordenador do programa, Marcos Sossai.

Em seis anos, a iniciativa envolveu 4 mil propriedades rurais, com a restauração de cerca de 10 mil hectares em áreas degradadas, além de outros 10 mil hectares de florestas já existentes que foram mantidas em pé. O programa executou, até o momento, cerca de R$ 65 milhões em PSA aos produtores, e tem previsão de mais R$ 53 milhões até 2022. Com novo financiamento do Banco Mundial, a expectativa é aumentar a escala para 10 mil propriedades atendidas até 2027.  

Como suporte à expansão, um estudo em 150 microbacias hidrográficas no estado está medindo a qualidade da água e definindo áreas prioritárias de conservação e restauração de modo a reduzir os sedimentos carreados para os rios. “Com base nisso, inverteremos a lógica do trabalho: vamos chamar o produtor e dizer qual área queremos recuperar”, explica Sossai.

Em paralelo, outro levantamento colhe dados sobre o nível de sedimentos em diferentes pontos de captação de água. O intuito é demonstrar o potencial de ganho econômico no serviço de abastecimento com a redução do impacto da sedimentação. Pesquisas anteriores apoiadas pelo Banco Mundial nas bacias que abastecem a Região Metropolitana de Vitória já indicaram que a redução de 1% nos sedimentos pode diminuir em até R$ 20 milhões os gastos no tratamento hídrico, em 20 anos. Segundo Sossai, a ideia é identificar o potencial de futuras iniciativas de investimento em PSA que venham a ser adotadas por empresas de abastecimento como forma de alcançar menores custos ao incentivar práticas sustentáveis e plantios de árvores nas áreas de mananciais.

Além da questão hídrica, a experiência do Programa Reflorestar, com o contínuo aumento de agroflorestas no cardápio de projetos, expande-se na agenda do desenvolvimento econômico do Espírito Santo, diante do atual plano do governo de criar um polo regional de silvicultura de espécies nativas, baseado em madeiras nobres. Desenvolvida em parceria com a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, a estratégia pretende aproveitar a estrutura logística e a vocação florestal do eucalipto cultivado no estado para produção de celulose e papel. “A prioridade agora é trabalhar a frente legal para viabilizar o ambiente de negócios e atrair investidores”, revela Sossai.

Mata Atlântica

Rio do Peixe, uma nova história

As irmãs biólogas Ana e Flávia Balderi estavam no Ensino Médio quando o programa de fim de semana consistia em coletar sementes na mata e descobrir nos livros em quais árvores iriam se tornar. Daí a juntar mais jovens para plantá-las na margem dos rios foi um passo natural, intrigadas que estavam com a cor de terra daquelas águas, no município de Socorro (SP): “Queríamos mudar essa realidade de degradação, mas de nada adiantava tudo isso sem planejar e medir resultados”, revela Ana, cofundadora da Associação Copaíba – inspirada no nome da árvore bastante conhecida na Amazônia, mas que na Mata Atlântica também dá o ar da graça, destacando-se na paisagem pela cor vermelha no período da troca das folhas.

Nas bacias dos rios do Peixe e Camanducaia, o trabalho abrange hoje 305 proprietários rurais em 19 municípios do Leste de São Paulo e Sul de Minas Gerais, com o total de 600 hectares em processo de restauração sendo monitorados, com apoio ONGs parceiras, como o WWF-Brasil, e de empresas. Além da educação ambiental e engajamento de produtores locais, a estratégia requer mobilização em redes e fóruns, apoio a políticas públicas e produção de mudas em viveiro próprio, capaz de produzir 500 mil unidades por ano a partir de sementes colhidas nas matas de sítios e fazendas.

O salto inicial, no projeto Verde Novo, teve recursos do governo federal, quando o Ministério do Meio Ambiente apoiava a sociedade civil no desafio, além do suporte internacional, por meio de movimentos como o One Tree Planted, para o plantio de 160 mil mudas até 2021. “Após 16 anos, já observamos o retorno da avifauna e de espécies como lobo-guará e cachorro-do-mato”, diz Flávia.

Estudo internacional identificou a Mata Atlântica – reduzida a 12,4% da original – como área prioritária para restauração no mundo. Além disso, segundo levantamento do Instituto Internacional para Sustentabilidade (IIS), a recuperação do bioma pode gerar três milhões de empregos no campo.

“Trabalhamos toda a cadeia, desde a coleta de sementes até doação de mudas e assistência para plantio e monitoramento”, informa a bióloga, ao lembrar que na região onde trabalha restaram apenas 15% de vegetação nativa, com predominância de pastagens de baixa produtividade.

É essencial a adesão de vizinhos para a formação de corredores ecológicos, mas há barreiras: “Como a maioria dos proprietários já não vive mais no local, existe a cultura de abandonar o gado no pasto e após seis anos levá-lo para o abate, e neste período os animais têm livre acesso à beira dos rios para beber água, causando impactos”. A proximidade da região com a capital paulista tem gerado um movimento de lotear propriedades devido à pressão imobiliária, “mas há uma maior percepção no sentido de conservar matas e recuperar áreas degradadas”, completa Flávia. Como exemplo, duas proprietárias doaram à Copaíba 2,5 hectares, transformados em Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), de onde se irradiam as ações de restauração no entorno.

O projeto Raízes do Mogi Guaçu, iniciado em 2019 com seis proprietários, reúne atualmente 26 produtores de seis municípios, totalizando 42 hectares em restauração. A meta é recuperar uma área pelo menos cinco vezes maior, em parceria com o WWF-Brasil e empresas como a International Paper, que possui fábrica na região e demandou inicialmente as ações para enfrentamento do risco hídrico, após as lições impostas pela severa seca que afetou as atividades produtivas entre 2013 e 2014.

A iniciativa permitiu ampliar o apoio que vinha sendo fornecido aos proprietários rurais pela Copaíba, criando maior engajamento. “Assim, com assistência técnica e materiais para cerca e preparo do solo, por exemplo, há mais chances de as florestas se perpetuarem”, afirma Ana, lembrando que, apesar do grande interesse, a restauração, muitas vezes, não é realizada porque é cara. Atualmente, segundo ela, há maior atrativo para o retorno dos proprietários à terra, com motivação para ampliar a área de conservação e investir em agroflorestas com retorno econômico, além do potencial do turismo rural (assista aqui ao vídeo sobre a iniciativa).

Entre as 17 nascentes em processo de recuperação pelo projeto, uma está localizada no sítio do casal André e Júlia Jardim, no município de Bueno Brandão (MG). Ele, geógrafo, ela, geóloga, a dupla antecipou o antigo sonho de viver no campo, longe da correria da capital, adquirindo seis hectares – metade com mata conservada. Não fosse a pandemia de Covid-19, o plano original seria tirar um período sabático na mineradora onde trabalhavam para fazer uma expedição por estradas de Ushuaia ao Alasca, a bordo de uma antiga camionete Chevrolet 71, no ano passado. “Plantamos 4,3 mil mudas para recuperar a nascente e começamos a criar uma agrofloresta com espécies frutíferas na pastagem degradada”, conta André, com plano de adquirir terras vizinhas para dobrar a área.

Cerrado

Os coletores da Chapada dos Veadeiros

Filho de agricultor e garimpeiro, o goiano Claudomiro Cortes trabalhava na lavoura com a família de 13 irmãos e decidiu ingressar na brigada de combate a incêndios do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros como complemento de renda no período de clima seco, quando a roça fica menos produtiva. Ele não sabia, porém, que a atitude significaria um futuro diferente para sua história pessoal e daquele importante pedaço do Cerrado, bioma que já perdeu mais da metade da vegetação original e representa 70% da agricultura brasileira.

Do trabalho inicial contra o fogo na mata veio o entendimento de como funciona a natureza e, posteriormente, a descoberta de oportunidades na restauração do que havia sido destruído. “Após seis meses na brigada, fui chamado para trabalhar no parque e assim começou minha paixão pela conservação, porque antes disso só fazia derrubar árvores”, revela Clau, como é conhecido pelas bandas de Alto Paraíso (GO) e entorno, onde vive à luz de vela, sem energia elétrica, no povoado de São Jorge – famoso como reduto de vida alternativa, agora também berço de ações visando a recuperação ecológica, com envolvimento de empresas e diversas instituições.

A primeira luz neste caminho surgiu em 2009, quando um grande incêndio fugiu de controle devido à grande quantidade de capim-colonião disseminada no passado para alimentar gado em área hoje dentro do Parque Nacional. Essa espécie exótica, ou seja, não nativa do Cerrado, funciona como combustível que faz a queimada se alastrar, e as equipes não tiveram chances de evitar o estrago. Alguém deu a ideia de retirar a planta invasora e colocar o Cerrado de volta, para que o problema não se repetisse no futuro. “Fomos a campo, coletamos vários quilos de sementes de árvores nativas, plantamos, mas ninguém acreditava que germinaria, tal a degradação causada na área pelo fogo”, conta Clau, revelando a grande surpresa que tiveram ao retornar tempos depois para ver o experimento: “Tinha nascido tudo; estava lindo”.

Até o dia da reunião com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio) para avaliação da continuidade do projeto, em que veio uma outra surpresa: a recomendação de plantar não somente árvore, como também capins nativos, de forma que o Cerrado fosse recuperado com critérios ecológicos, como no ambiente natural, no qual as gramíneas estão presentes. “No meu imaginário, restauração só se fazia plantando árvore”, afirma Clau. Ele diz que foi chamado de maluco pelos colegas, que após esse dia o flagravam colhendo sementes de capim. “Fiquei especializado nisso, descobri que há mais de 300 espécies nativas desse tipo no Cerrado, mas o pessoal dizia que precisávamos plantar banana, abacate ou outras árvores mais úteis, porque capim a gente não come.”

Não demorou para o trabalho ser reconhecido. Crescia a procura por projetos de restauração no parque e foi necessário treinar 66 famílias de comunidades vizinhas na coleta de sementes, em 2017, convencendo-as a manter a mata bem conservada para terem renda e, nisso, conseguiram juntar 12 toneladas. Precisavam vender, e o empurrão foi dado pelo ator Marcos Palmeira, em filmagem na região: “Ele me parou na estrada dizendo que soube do grupo de coletores que estava restaurando o Cerrado e queria falar com quem coordenava”, revela Clau. Com ajuda do artista, o Sebrae apoiou a criação da Associação Cerrado de Pé, na qual os coletores não somente expandiram a venda de sementes, como passaram a executar projetos de restauração, inclusive fora do Parque Nacional.

Como forma de evitar a burocracia, participar de editais e viabilizar o escoamento, a estratégia do grupo foi realizar as vendas através da Rede de Sementes do Cerrado, sediada em Brasília e já estabelecida no mercado, o que demonstra a tendência do trabalho em rede neste setor (saiba mais nesta reportagem). Em 2020, o faturamento chegou a R$ 200 mil, e o objetivo neste ano é aumentar para R$ 350 mil, distribuídos entre 80 famílias de comunidades rurais, como Teresina de Goiás, do povo Kalunga.

Lá, o quilombola Jaber Guilhermino de Brito orgulha-se ao contar que comprou um bezerro com um pé de cagaita – fruta do Cerrado bastante apreciada em sucos e sorvetes. Além das sementes, o dinheiro para a aquisição do animal veio da polpa que o produtor começou a beneficiar, e o plano é agora vender as vacas para plantar espécies nativas no quintal e se dedicar exclusivamente ao fornecimento do insumo básico de projetos que reconstroem o bioma.

A renda de uma família com a venda de sementes pode chegar a R$ 15 mil por ano, segundo estimativa de Clau. Ele conta que, no ano passado, um grupo de coletores fez a restauração de uma área sob encomenda de uma usina hidrelétrica e pelo bom trabalho todos receberam uma diária a mais. Três deles, irmãos Kalunga da comunidade Vão do Moleque, utilizaram os R$ 300 além do previsto na compra de um fogão a gás para a mãe, que durante toda a vida precisou cortar lenha para cozinhar. “Voltei lá após três meses e ela ainda não tinha usado o presente, guardado como relíquia para não estragar, até o dia em que finalmente fez a inauguração e me chamou para um café”, diz Clau.

Ele passou de coletor de sementes a técnico em restauração do Cerrado, na trajetória que permitiu, até o momento, a volta da vegetação nativa em 450 hectares. Diante da crescente demanda de empresas em projetos de compensação ambiental, a ideia é expandir as ações por meio de parcerias com fazendeiros para acesso a novas áreas de coleta, seguindo regras como a retirada de até 30% das sementes para garantir a dispersão natural e a alimentação da fauna. “Não temos outra saída senão restaurar, porque daqui a um tempo já não teremos água”, afirma (assista aqui ao vídeo sobre a iniciativa).

Caatinga

A salvação do Velho Chico

A necessidade da restauração ecológica da Caatinga, bioma que apresenta particulares condições de clima e solo no Semiárido brasileiro, com vegetação nativa reduzida a 44% da original, traz junto um desafio urgente: evitar a degradação e a morte do Rio São Francisco, recuperando as matas ciliares do longo de suas margens. Em alguns trechos, devido à acentuada erosão, já é possível atravessá-lo a pé, e a busca por soluções tem inspirado experimentos científicos do Centro de Referência para Recuperação de Áreas Degradadas (Crad), no sentido de entender as dinâmicas que influenciam a flora e como devolvê-la à paisagem severina.

Cerca de 40% da bacia hidrográfica do Velho Chico é coberta pelo bioma Caatinga, e algo perigoso acontece na faixa à beira d’água: uma invasão biológica. “As margens estão repletas de plantas exóticas, como gramíneas africanas e outras espécies originárias dos vários continentes, o que coloca em risco os 2% de matas ciliares que restaram, em média”, adverte José Alves de Siqueira Filho, diretor-executivo do Crad, ao lembrar que há vários tipos de Caatinga e a existente nessa região difere das características em outros lugares do sertão nordestino.

Iniciada há cinco anos, uma pesquisa em área experimental na margem do São Francisco, em Juazeiro (BA), identificou 101 espécies de plantas, sendo 18 invasoras. Um dos objetivos foi entender o real papel da algaroba, árvore originária do Peru, disseminada no Nordeste brasileiro para alimentação do gado e do bode pelas vagens. “Verificamos que ela atrapalha a restauração ecológica, mas não é o principal problema e pode dispensar custos com o corte para repor espécies nativas. As maiores ameaças são as invasoras”, adverte Siqueira.

A pesquisa constatou que, devido a essas alterações e à contínua redução das matas ciliares, plantas de regiões secas, como o emblemático mandacaru e outros cactos, estão tomando o espaço na beira do rio. Nessas áreas, segundo Siqueira, a vegetação tornou-se mais empobrecida – e restaurá-la requer conhecimento científico, além de intervenções de longo prazo. “Na Caatinga, não é possível a regeneração natural como ocorre em outros biomas mais úmidos, tamanho o nível de colapso aqui verificado”, reforça o pesquisador. “É preciso um pacote de tecnologias para gerir a restauração do bioma; só doação de mudas para educação ambiental não resolve.”

A boa notícia é que existe solução, embora de alto custo pela necessidade de mudas, água e contínuo monitoramento. Com base nos experimentos em Juazeiro, nos quais foram plantadas 30 espécies, os pesquisadores confirmaram os resultados da técnica de restauração, desenvolvida pelo Crad, que considera as condições de resiliência no bioma, chamada “bomba de biodiversidade”. Funciona, analogicamente, como uma maternidade. Nela, o conceito de “cova” é substituído pelo de “berço”, forrado por palha de coqueiro para o desenvolvimento da muda, e uma garrafa plástica com água tem a função de “mamadeira” na irrigação. No sistema, as plantas crescem conforme a sequência da natureza, envolvendo espécies pioneiras, secundárias e de clímax (assista aqui ao vídeo sobre a iniciativa).

“Como filho de produtor rural, vi muito desmatamento acontecendo como método”, afirma o geógrafo Joaquim Neto, criador da SOS Sertão, sediada em Patos (PB), e que há duas décadas luta para a região não virar um deserto. Para isso, um dos principais desafios é viabilizar o insumo indispensável à restauração ecológica: água. No Rio Grande do Norte, com apoio do Banco Mundial e do governo estadual, a ONG recuperou áreas com irrigação por poço artesiano durante o período de seca, incluindo como diferencial o plantio da palma forrageira, útil à alimentação animal e geração de renda na região. Na Paraíba, igual modelo foi implantado, mas com uma novidade: a utilização de água de reuso do chuveiro à cozinha nas comunidades rurais.

“É fundamental plantar antes do período de chuva, para posteriormente a árvore utilizá-la no crescimento”, recomenda Neto. Em território potiguar, as atenções se voltam agora à recuperação de 106 hectares em área atingida por fogo no Parque Nacional da Furna Feia, rico em água no subsolo. Além da instalação de poço e viveiro de mudas, a integração e capacitação técnica das comunidades locais têm sido fator-chave no projeto, financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Amazônia

Menos custos, mais valor

O conceito de regeneração natural assistida – ou seja, o empurrão na capacidade da natureza de se autorregenerar – ganha espaço em regiões de clima e solo propícios, diante do desafio de reduzir custos e aumentar o engajamento de grandes produtores rurais para uma maior escala da restauração florestal no País. “O método é um importante chamariz por exigir baixo capital, no cenário em que os proprietários resistem a dispender mão de obra e investimentos sem retorno imediato”, afirma o biólogo Eduardo Darvin, coordenador do programa de Negócios Sociais do Instituto Centro de Vida (ICV), em Cuiabá (MT).

Em oito municípios amazônicos do Mato Grosso e Pará, o objetivo é restaurar 260 mil hectares em quatro anos, no projeto iniciado no fim de 2020 pela ONG, com apoio da empresa Suzano e recursos de US$ 5 milhões por ano. Em campo, os técnicos verificarão os fatores que mais contribuem para a regeneração, como a proximidade com florestas naturais que permitem a dispersão de sementes em benefício das áreas vizinhas em recuperação.

A solução não é apenas abandoná-las e deixar as árvores crescerem sozinhas, mas isolar o local de agentes impactantes, como o gado, agrotóxicos, máquinas agrícolas e fogo. É preciso uma interação mínima, além de colocar cercas: “As áreas devem ser estudadas e monitoradas, além da necessidade de reconhecimento formal como projeto de restauração”, explica Darvin.

Após a identificação dos atores e realização de oficinas junto a empresas rurais, cooperativas e outras organizações, a iniciativa fará o mapeamento de áreas prioritárias por meio de geotecnologias, apontando lugares de baixo, médio e alto potencial de regeneração natural. Entre as ações, está o engajamento de órgãos públicos para a adoção do modelo no Programa de Regularização Ambiental (PRA) das propriedades rurais, conforme previsto pela lei.

“A principal barreira está em novos desmatamentos que colocam em risco áreas em recuperação”, adverte o biólogo, para quem é necessário criar parâmetros de monitoramento. E, também, definir os locais mais propícios e agir, antes que seja tarde demais. O potencial da regeneração natural é atrativo, mas em áreas de maior degradação há o risco de isso já não ser mais possível, conforme o resultado dos impactos das queimadas e do desmatamento.

Na Amazônia, o passivo ambiental soma 8 milhões de hectares – área que precisa receber a floresta de volta e representa o dobro do território do estado do Rio de Janeiro. Em São Félix do Xingu e Tucumã (PA), municípios do Arco do Desmatamento, outro projeto, conduzido pela TNC, mobiliza a agricultura familiar para a produção em agroflorestas, alternativa de renda que valoriza a floresta em pé e tem o cacau como carro-chefe na concorrência com atividades que degradam.

“Na Amazônia, o modelo se integra a uma bioeconomia da restauração florestal vinculada às cadeias produtivas da sociobiodiversidade”, observa Rodrigo Freire, gerente da estratégia de restauração florestal da ONG e coordenador das ações na região, com apoio à assistência técnica e acesso a crédito rural. Hoje, a estratégia abrange 260 famílias, no total de 900 hectares de pastagens transformadas em agrofloresta produtiva, junto a mais 500 hectares de áreas conservadas.

Além da segurança alimentar, o plano é alcançar entre 20% e 30% de aumento da renda bruta após cinco anos de projeto. A iniciativa integra grandes indústrias do setor para fazer a ponte entre cooperativas de pequenos produtores e a fabricação de chocolate com o diferencial amazônico e rastreabilidade da origem sustentável. “O cacau apresenta rentabilidade sete a dez vezes maior em relação à pecuária de baixa produtividade, principal vetor de desmate na região, 40% a 50% associado à agricultura familiar”, ressalta Freire.

O objetivo, segundo ele, é tornar a restauração florestal um motor de desenvolvimento, na esteira do interesse global por cooperação nas questões da Amazônia. Em parceria com a Extreme E, empresa britânica que promove corridas off-road internacionais com carros elétricos em regiões remotas como a Floresta Amazônica ou o Ártico, o projeto vai restaurar 200 hectares com agrofloresta, beneficiando 50 famílias na região.

Pantanal

Vida após o fogo

Menos de um ano após a tragédia dos incêndios que devastaram o Pantanal, as cenas da natureza “ressuscitada” pelas chuvas, exibidas recentemente na TV, são motivo de alento. Mas estão longe de elucidar a complexidade da restauração ecológica no bioma, marcado pelo fluxo das águas na dinâmica de cheias e vazantes. “É preciso conhecer bem o sistema e não dá para trabalhar com modelos importados de outras regiões”, diz a pesquisadora Solange Ikeda, da Universidade do Estado do Mato Grosso.

A bióloga seguiu com os pais e avós a rota da imigração japonesa no Brasil até chegar em Cáceres (MT), ao Norte do Pantanal, onde o legado da história familiar a fez mergulhar na vivência com comunidades tradicionais, associando as pesquisas acadêmicas ao trabalho social. Nessa trajetória, criou o Instituto Gaia, inicialmente voltado à educação ambiental e aos alertas contra os impactos da Hidrovia Paraguai-Paraná, até que, em 2011, começou a olhar também para as crescentes demandas de assentamentos rurais diante das nascentes que secavam.

“A união do conhecimento tradicional à ciência é estratégica, porque não existem referências completas sobre a germinação das espécies no Pantanal”, afirma Ikeda. Ela lembra que o bioma apresenta diversas fisionomias vegetais, desde as áreas mais secas até as alagáveis, e nesses sistemas as plantas são condicionadas a fatores como altura e tempo de inundação, por exemplo.

Atualmente, após as queimadas do ano passado, as equipes da bióloga estão revisitando as áreas de 50 nascentes que começaram a ser restauradas, com apoio do WWF-Brasil e outras entidades, em 2012. O objetivo é verificar o estado em que se encontram e a necessidade de novas intervenções. “É fundamental o diálogo com as comunidades para a restauração, uma vez que é notória a redução das chuvas e das áreas alagadas, agora vulneráveis ao fogo”, diz Ikeda.

Em paralelo, o Instituto Gaia iniciou a recuperação ecológica com viés social em quatro comunidades do entorno do Parque Nacional do Pantanal, com plantio de 30 espécies nativas em sistema agroflorestal, como a laranjinha-de-pacu, importante para a cadeia alimentar, e a cambará, uma das primeiras a retornar à natureza em regeneração. A iniciativa, também voltada à produção de alimentos, foi demandada pela Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneiras e integra o programa Humedales Sin Fronteras, abrangendo áreas úmidas do Brasil e de países vizinhos, com financiamento da Holanda.

Com práticas de restauração no Pantanal, plântulas abundantes coletadas nas regiões de baixio, que já sofreram cheias, são transplantadas para as áreas mais altas e protegidas do gado por cerca, aumentando sua sobrevivência.

“A chuva ameniza, mas não cura as feridas”, reforça a pesquisadora, ao explicar que “tudo pode rebrotar, mas não sabemos os impactos da degradação sobre a sucessão ecológica e os demais fatores ligados a esse processo”. Além das queimadas no período seco, a planície pantaneira sofre com os efeitos da expansão da soja no bioma vizinho, o Cerrado – problema associado a outros fatores, que por décadas causa erosão e alterações graves do Rio Taquari, na região de Coxim (MS), afetando o equilíbrio ecológico e a dinâmica de inundações (saiba mais sobre o desastre ecológico do Rio Taquari neste documentário).

Essas e outras questões são temas do atual movimento, liderado por Ikeda, em torno da constituição do Pacto pela Restauração do Pantanal, com mais de 40 entidades, nos moldes de redes já existentes nos demais biomas brasileiros (saiba mais nesta reportagem e assista aqui ao vídeo sobre a iniciativa).

Pampa

A natureza a nosso favor

Aos 12 anos, quando percebeu que os impactos dos cultivos agrícolas causavam escassez de água e sumiço dos animais no entorno do Rio Vacacaí, em Santa Maria (RS), a pesquisadora gaúcha Ana Paula Rovedder já tinha decidido pelo futuro profissional na área de meio ambiente e caiu na restauração florestal. “Chorei na adolescência com a notícia do assassinato do líder seringueiro Chico Mendes e certamente aquilo não passaria em branco”, conta.

De início, a agrônoma e engenheira florestal dedicou-se às pesquisas sobre impactos às dunas naturais no Oeste gaúcho. Hoje, como coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Recuperação de Áreas Degradadas (Neprade), da Universidade Federal de Santa Maria, está à frente de trabalhos que imitam os processos da natureza para a restauração do Pampa, bioma que ocupa 176 mil quilômetros quadrados no Sul do País, ou 2% do território brasileiro. “A caminhada é recente e temos muito a aprender, porque a demanda para conserto dos danos é muito grande”, aponta a pesquisadora.

Ao contrário das áreas florestais, associadas a rios e à transição desse bioma com a Mata Atlântica – em que já existe maior conhecimento técnico para recuperação –, as formações campestres presentes em grande parte da região representam um desafio. “É necessário adaptar métodos já conhecidos aos condicionantes do clima subtropical, entendendo melhor o comportamento de nossas espécies e como os plantios reagem a determinadas situações, como as geadas”, explica Rovedder.

“A estratégia é desenvolver técnicas que tenham a natureza a nosso favor”, enfatiza. No projeto Restaura Pampa, financiado pelo Global Environment Fund (GEF), o objetivo é testar formas de recompor a vegetação campestre, utilizando como laboratório áreas da Reserva Biológica do Ibirapuitã e do Parque Estadual do Espinilho. Nesses locais, serão aplicadas técnicas como a transposição de fatias do solo contendo propágulos e sementes e a dispersão delas por animais, inclusive com a reintrodução de espécies de aves, como o cardeal-amarelo.

O Pampa possui diferentes fisionomias de paisagem, dos banhados e matas de galeria aos mosaicos de vegetação campestre, nos quais os campos nativos convivem em equilíbrio com a pecuária. A atividade ajuda a conservá-los por meio do pastejo – cenário onde historicamente surgiu o ícone cultural do “homem gaúcho”.

Nos campos sulinos, a estratégia de restauração ecológica deve incluir o manejo pastoril, associado ao uso de espécies nativas não florestais, permitindo retorno econômico e o ganho de escala. No entanto, nas últimas duas décadas os impactos ambientais reduziram em 17% a cobertura original do bioma – 1,5 mil quilômetros quadrados, dez vezes o território do município de São Paulo. “A maior ameaça vem da agricultura para produção de commodities, principalmente soja”, adverte a pesquisadora, também dedicada ao estudo de espécies medicinais como resgate do conhecimento tradicional perdido ao longo da História.