Por Amália Safatle

Já pensou que o modo como se busca a inovação também pode ser inovador? Isso acontece, por exemplo, quando se promove inovação não apenas por meio do lançamento de produtos e serviços, mas também ao estabelecer os objetivos que se deseja alcançar com essa inovação, nos métodos escolhidos para isso e nos relacionamentos e interações cultivados entre os diversos elos de uma cadeia de valor.

Mas, antes disso, vamos falar sobre inovação. Esta é uma das palavras mais recorrentes no mundo dos negócios, com efeitos diretos na vida dos consumidores. Não por menos: as inovações são consideradas o coração que faz pulsar o desenvolvimento econômico capitalista, de acordo com um dos primeiros e principais teóricos do assunto, o economista e cientista político Joseph Schumpeter.

Já na primeira metade do século XX, Schumpeter definia inovação como uma nova combinação de meios de produção capaz de emergir em cinco situações: quando se lança um novo produto ou serviço, quando se introduz um novo processo produtivo, quando se abre um novo mercado, quando se conquista uma nova fonte de oferta de matéria-prima, ou quando se estabelece uma nova organização para o negócio.

Com o tempo, a necessidade de inovar ganhou outros contornos, mais complexos. À medida que as ações humanas sobre a Terra passaram a causar impactos crescentes e profundos, a sociedade foi se dando conta dos desafios globais que deveria encarar.

A partir de meados da século XX, contaminações, poluições de toda sorte, escassez de recursos naturais e doenças advindas de um ambiente degradado pipocavam pelo mundo. Mais que isso, o equilíbrio dos sistemas vivos como um todo tornou-se seriamente comprometido em escala global – fenômeno que ficou patente com a mudança do clima e seus efeitos (leia mais sobre essa mudança profunda no ambiente nesta entrevista).

Sem falar que todos esses prejuízos causados pelo homem ao explorar o ambiente não resultaram necessariamente em maior qualidade de vida. Ao contrário, o ambiente explorado de forma insustentável reduz o bem-estar social e reforça as desigualdades, pois são as populações mais pobres as mais vulneráveis, com menores condições de resistir aos impactos e de se adaptar às mudanças. Veja, por exemplo, o impacto do furacão no Haiti (foto abaixo).

Jethro J. Sérémé / American Red Cross / IFRC
Jethro J. Sérémé / American Red Cross / IFRC

Todos os elementos mencionados até aqui mostram que, para atender às necessidades da população mundial de maneira mais justa e equânime nesta e nas futuras gerações, os limites ambientais terão de ser respeitados. Será preciso, por exemplo, fazer mais com menos. Para isso, será exigida muita inovação em produtos, serviços, processos, visões e estratégias de atuação (assista a este vídeo). Assim, uma das primeiras formar de inovar inovando é…

… definir a sustentabilidade como diretriz e objetivo.

Há uma relação íntima entre sustentabilidade e inovação. Sem inovar, dificilmente os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável serão alcançados. E sem colocar a sustentabilidade como driver da inovação, estamos condenados a repetir um modelo de desenvolvimento que já se provou falido (saiba mais aqui). Persistir no business as usual, ou seja, na forma de fazer negócios da velha economia, significa encurtar o caminho para uma situação de colapso ambiental e social.

Não restará alternativa à humanidade que não a da nova economia, com sistemas de produção e de consumo circulares, nos quais o resíduo de um vira matéria-prima para o outro, de modo que a extração de recursos e a geração de lixo sejam as menores possíveis, tendendo a zero. Isso que chamamos de economia circular também exige fontes de energia limpas e renováveis, além de produtos, serviços e processos voltados para a eficiência energética, levando em conta que a energia mais limpa de todas é aquela que não precisa ser gerada (mais sobre energia aqui).

Uma perspectiva inovadora é a de criar valor – mas não qualquer valor. É preciso olhar para os objetivos, para aquilo que se busca alcançar com a inovação. “Se não for para estar a serviço de uma mudança de modelo, para que inovar? Não faz sentido produzir novas coisas que, em maior volume, comprometam mais ainda os limites planetários e ampliem as desigualdades”, afirma Paulo Durval Branco, vice-coordenador do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Eaesp-FGV (GVces) e que está à frente do programa Inovação na Criação de Valor (ICV).

Branco explica que não se trata de inovar para simplesmente continuar consumindo nos mesmos moldes do business as usual. “Se estamos falando de transição para uma nova economia, os negócios precisam fazer parte dessa construção”. E, para isso, os negócios precisam ver-se como integrantes de uma cadeia na qual todos os componentes são conectados e interdependentes. Com isso, inovar também é…

… discutir a relação

Embora possua características que favorecem a inovação, como maior flexibilidade, agilidade e dinamismo, a maioria esmagadora das empresas – as de micro, pequeno e médio porte – tem menos acesso tanto a conhecimento técnico quanto a recursos financeiros. Com tal dificuldade, essa imensa força produtiva de onde a inovação poderia brotar acaba sendo desperdiçada.

Aí que entra a importância de a cadeia de valor ser trabalhada, fortalecendo uma rede de relacionamento na qual todas as partes interagem e dependem umas das outras. Não são apenas as micros, pequenas e médias empresas que precisam das grandes, estas dependem fortemente de seus fornecedores. Olhar para essa relação como uma via de mão dupla, e não como de dominação do maior sobre o menor é também uma forma de inovar inovando.

O mundo dos negócios está repleto de casos em que empresas têm sua reputação manchada por deixar de olhar a procedência de seus suprimentos e a forma como foram extraídos e produzidos. Isso é muito comum – para citar um exemplo – na cadeia de moda, em que os varejistas terceirizam ou quarteirizam a produção das confecções e volta e meia surgem denúncias de uso de trabalho análogo à escravidão, entre outros problemas.

Ao mesmo tempo em que há riscos a serem administrados, existem oportunidades a aproveitar, tais como buscar a capacitação e o desenvolvimento do fornecedor local, induzir boas práticas e promover iniciativas colaborativas.

Quanto mais essa relação for construída de forma conjunta entre compradores e fornecedores, melhor. “O modo como os relacionamentos se dão hoje é algo que ainda pertence à velha economia. Já o relacionamento inovador reconhece que, estando sozinho, não se dá conta das demandas da nova economia. Precisa haver cocriação e sair da lógica de dominação dos grandes sobre os pequenos. A solução depende de cooperação”, diz Branco.

Segundo ele, o relacionamento inovador também enfatiza a transparência nas informações, de modo que as tomadas de decisão sejam mais alinhadas em torno de objetivos comuns (acesse aqui e aqui dois relatórios do GVces que tratam da gestão sob o ponto de vista das compras sustentáveis, sendo que o segundo propõe uma matriz de risco na cadeia de fornecedores).

Tem ficado cada vez mais claro, portanto, que para inovar de verdade é preciso…

… olhar para além dos muros da empresa

Em depoimento ao programa ICV, Wilson Nobre, fundador e pesquisador do Fórum de Inovação da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (Eaesp-FGV), diz que, depois de mais de 100 anos de investimento e evolução na otimização de processos empresariais, as organizações executam bem aquilo que se esperava delas.

“No entanto, toda essa conquista ocorreu segundo uma lógica de estruturação fragmentada dos atores econômicos: cada organização cuida bem somente do seu umbigo. Há enormes pepitas de ouro fora dos muros das organizações e quem as está capturando são os novos empreendedores, as startups, aqueles que não se ajustaram ao modelo hierárquico de comando e controle com o qual as organizações atingiram seu ótimo local”, afirma Nobre.

O jogo é de ganha-ganha. As organizações que se pautam pela sustentabilidade e se veem parte de um sistema complexo – onde possuem múltiplas responsabilidades sociais e ambientais e aprendem a trabalhar em rede – desenvolvem melhores vínculos comerciais, constroem relações mais justas e duradouras com todos os seus públicos de interesse e, com isso, adquirem uma importante vantagem competitiva. Em contrapartida, a sociedade e o ambiente também ganham.

Pode-se observar uma evolução em alguns ambientes de inovação no Brasil, que inicialmente trabalhavam projetos empresariais individuais, mas perceberam que a riqueza estava em participar de um ecossistema, ou seja, um ambiente de relacionamento formado por diversos atores interdependentes, espelhando-se em sistemas da natureza. O GVces acompanhou muito de perto esse histórico: saiba mais aqui.

Como em todo ecossistema, tudo se retroalimenta. É o princípio que inspira a economia circular. Assim, inovar também é…

… perceber-se como parte de um sistema integrado

Nesse sistema, não basta olhar para a operação da empresa em si, de forma isolada e linear. Ela faz parte de uma rede ou cadeia integrada por fornecedores, parceiros, governo, clientes, consumidores, concorrentes, comunidades.

A operação é apenas um dos elos de um sistema em rede que integra matéria-prima, resíduos e toda a logística envolvida na movimentação desses insumos, produtos e rejeitos, ou seja, nos fluxos entre os diversos elos.

Em um vasto território como o brasileiro, as atividades produtivas que desejam ser inovadoras precisam olhar com atenção para a logística, diante das emissões de gases de efeito estufa, especialmente pelo setor rodoviário.

Olhar o território dessa perspectiva global, endereçando o impacto o para o clima mundial causado pelas emissões geradas nos deslocamentos, é apenas uma vertente. É preciso olhar também o território sob a perspectiva local, com todas as suas peculiaridades. Dessa forma, inovar é…

… olhar para o território e seu tecido social

Em geral associamos inovação a um advento com tecnologia de ponta e, quando pensamos em inovação empresarial, logo imaginamos organizações sediadas em grandes centros urbanos. Nem sempre lembramos que existe um vasto espaço para inovação para além desse ambiente urbanizado, seja no campo, seja em regiões distantes do eixo Sul-Sudeste (sobre o campo leia aqui).

Como demonstram alguns casos descritos neste relatório, a inovação pode estar em processos menos tecnológicos e mais de caráter relacional. Esses exemplos ilustram a mobilização que houve entre empresas, governo e sociedade civil para criar soluções locais ligadas à inclusão de negócios em cadeias de valor, promover diálogo com stakeholders e construir uma agenda de desenvolvimento local nos territórios nos quais se inserem grandes empreendimentos de diferentes setores.

Tal interação entre diversos atores foi proporcionada por uma iniciativa do GVces chamada Desenvolvimento Local e Grandes Empreendimentos (IDLocal), que alia duas experiências: uma, de construção de diretrizes e propostas empresariais para o desenvolvimento local no contexto de grandes obras; outra, voltada para a inovação em sustentabilidade envolvendo pequenos e médios empreendimentos que fazem parte da cadeia de valor de grandes empresas, denominada Inovação e Sustentabilidade na Cadeia de Valor (ISCV).

Segundo os pesquisadores do GVces, essa abordagem que integra inovação na cadeia de valor e desenvolvimento local engloba um rico leque de relações socioambientais, econômicas, político-institucionais e culturais, além de trocas materiais e simbólicas. Envolve o capital natural, o social, o humano, o econômico e o cultural.

Não se trata apenas de incluir atores locais no ambiente de negócios, por exemplo, contratando mão de obra e fornecedores locais, mas também de inseri-los no ciclo de crescimento econômico do território, investindo nas vocações e potencialidades do lugar e nos processos de desenvolvimento humano.

“Dessa forma, a riqueza gerada pela instalação, operação e desativação de um grande empreendimento ou pela atividade de uma cadeia de valor passa a ser compartilhada com o território”, explicam os pesquisadores dos GVces.

Adotar a lógica de cadeia de valor como estratégia de desenvolvimento local traz uma série de benefícios. É uma forma de prevenir, gerir e mitigar riscos e impactos prejudiciais que uma grande obra causa na região, como o aumento populacional repentino, a sobrecarga nos serviços públicos, a alta do custo de vida e inflação e o aumento da violência. Ao mesmo tempo, trata-se de uma maneira de enxergar as grandes empresas como parte de um território, o que pode traduzir-se em oportunidades como exploração de novos negócios, inovações baseadas no conhecimento local e acesso a matérias-primas a menor custo.

As empresas, por sua vez, são capazes de gerar uma série de contribuições ao território: preparar e fortalecer a gestão pública (para lidar com transformações nas dinâmicas populacionais, aumento de arrecadação de impostos, formulação e articulação de políticas públicas); apoiar serviços locais por meio de iniciativas de formalização de pequenos e médios negócios; participar de espaços de articulação para o debate conjunto sobre o futuro comum da região, entre outras.

De novo, o jogo é de ganha-ganha e o círculo, virtuoso. Ao mesmo tempo que uma cadeia de valor eficiente e responsável do ponto de vista socioambiental pode beneficiar e fortalecer o território, um território estruturado e fortalecido torna-se capaz de contribuir para uma cadeia de valor mais eficiente e responsável.

Se tivéssemos de resumir todo este texto em uma palavra, essa palavra seria “relacionamento”. Relacionamento com todo o ambiente do qual fazemos parte, seja global, seja local, relacionamento com as pessoas que integram o ecossistema de inovação, relacionamento na cadeia de valor para além dos muros das empresas. Isso foge ao receituário das cartilhas que ensinam inovação segundo os preceitos da velha economia. Assim, podemos dizer que inovar inovando, essencialmente, é…

… desligar os botões

A inovação tem o seu lado tangível, de cunho mais tecnológico. Mas também possui uma importante vertente intangível, que se baseia nos diversos níveis de relacionamento e interação. “A inovação não exclui a tecnologia, mas consiste em desligar os botões, em navegar sem o piloto automático”, diz Paulo Branco, do GVces. Ele ainda propõe mais uma definição: “Inovação é botar gente para sonhar junto, e, a partir desse sonho, transformar”.