Por Amália Safatle

Uma região que recebe um fluxo de recursos milionários só poderia considerar esse fato uma boa notícia? Não necessariamente. Regiões impactadas por grandes obras, tais como hidrelétricas e estradas, recebem um colosso de investimentos relativos a medidas de mitigação e compensação de impactos ambientais determinadas por lei. Mas há um problema de timing: em geral, esse dinheiro chega tarde e acaba cedo, assim que termina a obra. Esse quadro recebe o nome de boom-colapso. Quando o empreendimento é finalizado, ocorre um choque de desaquecimento econômico e, apesar do aumento da arrecadação pública por conta do pagamento de royalties em alguns casos, faltam recursos para uma agenda de longo prazo.

Com isso, perde-se a oportunidade de aplicar uma quantidade significativa de recursos em um plano de desenvolvimento integrado para a região. Esse planejamento é importante não só para garantir um legado depois que o empreendimento for implantado, mas também para promover medidas antecipatórias à chegada da obra, a fim de lidar previamente com os impactos que virão e também para identificar as oportunidades que dali poderão surgir.

As razões para esse descompasso estariam no sistema tradicional que o País usa ao implantar grandes projetos de infraestrutura. O fluxo de recursos oriundo da compensação ambiental é previsto para ser injetado em um curto espaço de tempo, espremido entre a concessão da licença prévia e a licença de operação.

Embora seja ferramenta imprescindível em projetos de infraetrutrura, o processo de licenciamento ambiental é insuficiente para projetar uma visão mais ampla sobre o que a sociedade deseja para aquele lugar. “O licenciamento sozinho não dá conta e nem tem esse mandato. São necessárias outras instâncias do governo federal que sejam atuantes em planos de desenvolvimento local, em conjunto com o empreendedor e a sociedade”, afirma Monzoni.

O dinheiro relativo a mitigação e compensação ambiental e social estabelecidos pela legislação é apenas uma das fontes de recursos públicos e privados que chegam a uma região por conta da implantação de uma grande obra. A realização de um empreendimento traz consigo também recursos atrelados a políticas públicas, royalties e impostos, filantropia e responsabilidade social empresarial, private equity e venture capital, investimento de impacto, empréstimos e financiamentos, entre outros.

Dinheiro na mão é vendaval

Mas, sem uma visão planejada, responsável e cuidadosa, o afluxo de dinheiro que repentinamente chega a um local pode levar a algumas aberrações no uso de recursos. Um caso notório é o de Vitória do Xingu. A cidade paraense de 14 mil habitantes, que abriga 93% das obras de Belo Monte e usa a palavra “progresso” no slogan, construiu aeroporto, inaugurou estádio com presença de globais e do jogador Zico, e ainda projetou um planetário “inspirado” em Oscar Niemeyer. Será que esse dinheiro não poderia ser usado em um plano mais integrado de desenvolvimento, que atendesse de fato às demandas locais em um horizonte de longa duração?

As questões de timing e da falta de uma visão integrada sobre o território, suas vocações e suas demandas não são os únicos problemas. O processo de alocação de recursos financeiros em geral falha nos quesitos de transparência e compromissso com eficiência, gerando conflitos de interesse e sobreposição de esforços e recursos. Um grupo restrito decide para onde vai o dinheiro, de forma pouco estruturante e com base em critérios insuficientes de planejamento. Em suma, ainda faltam mecanismos adequados para a aplicação e direcionamento de tais investimentos.

Diante disso, surgiu uma iniciativa voltada para aprimorar os processos. A International Finance Corporation (IFC), braço privado do Banco Mundial, e o Programa de Desenvolvimento Local do GVces construíram propostas na iniciativa Grandes Obras na Amazônia – Aprendizados e Diretrizes, que dedica um dos capítulos à questão de instrumentos financeiros.

Uma dessas propostas consiste em criar um mecanismo institucionalizado, no formato de um fundo com regras, critérios e procedimentos de governança que previnam vícios graves do processo. O que se propõe são novas institucionalidades capazes de conferir maior representatividade, coesão social, transparência e equilíbrio de forças, conforme preconiza o conhecimento acumulado em torno dos fundamentos do desenvolvimento local.

Essa iniciativa vem no bojo de um movimento contemporâneo global, que reconhece na Amazônia um valor intrínseco por tudo o que a maior floresta tropical do mundo representa, e também valoriza os serviços ecossistêmicos prestados para a qualidade de vida de boa parte da população do planeta (saiba mais sobre serviços ecossistêmicos aqui).

A velocidade com que esse bioma vem sendo degradado e as reações públicas a essa destruição estão sob os olhos vigilantes da mídia internacional e nacional, trazendo grande sensibilidade a qualquer nova iniciativa para incrementar a exploração de recursos naturais da região.

Isso porque ainda faltam na Amazônia investimentos que procurem trabalhar as forças de mercado de modo a impulsionar atividades produtivas guiadas pela conservação e uso sustentável da biodiversidade local, ao mesmo tempo capazes de gerar renda e emprego e melhorar a qualidade de vida da população. “Em geral, essas iniciativas não conseguem fazer frente à concorrência covarde das atividades ilegais, especialmente na extração de madeira, e nem competir com a escala e tecnologia empregada em atividades como a agropecuária”, diz Monzoni.

O diagnóstico é que falta um mecanismo financeiro para promover boas práticas de uso do solo e de conservação e uso de recursos naturais, bem como projetos de desenvolvimento de capital humano e social, extremamente necessários diante das transformações ocasionadas por um empreendimento de grande porte em uma região tão sensível.

Nesse contexto das grandes obras, foi identificada a necessidade de serem criados instrumentos intermediários entre financiadores e a sociedade local. O importante – ressaltam os autores do documento – é que os diferentes instrumentos financeiros necessariamente atuem de forma coordenada com a Agenda de Desenvolvimento Territorial (ADT) e que esta seja consensuada entre toda a sociedade.

A expectativa é que um instrumento financeiro com personalidade jurídica própria – com transparência, equidade e prestação de contas – evite pressões e negociações unilaterais entre atores específicos e o empreendedor, que desgastam as relações entre empresa, poder público e comunidade local, além de dificultarem a construção de uma lógica de desenvolvimento integrado na região.

Planos e agendas de desenvolvimento territorial, combinados a um instrumento financeiro, partem da premissa de que grandes obras nunca atuarão como o prometido vetor de desenvolvimento para a Amazônia se não proporcionarem rotas estratégicas em um horizonte mais amplo, seja na complementação de ações legalmente previstas para mitigação de impactos, seja no fomento a novas cadeias de valor.

 

Foto Kena Chaves
Foto Kena Chaves

Antecipação de recursos

Embora o desenvolvimento de fundos seja uma estratégia muito difundida no Brasil para o financiamento socioambiental, como mostra recente estudo do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio), o suporte a agendas de desenvolvimento territorial impõe desafios próprios. Um deles está relacionado à operacionalização do instrumento financeiro em âmbito local, incluindo seu arranjo de governança e monitoramento dos resultados alcançados. Outro é desenhar arranjos que viabilizem a antecipação de recursos voltados para o planejamento e a preparação do território.

Em relação a esse segundo desafio, é preciso pensar em instrumentos financeiros com um elemento antecipatório, para investimentos na instalação de infraestrutura que dê conta do extraordinário afluxo populacional previsto no território, bem como para ações cujo objetivo é a potencialização das capacidades institucionais locais. O elemento antecipatório pode ser caracterizado como uma carteira de investimentos prioritários voltados para uma fase específica: a preparação para a chegada de grandes obras, já com o olhar de longo prazo.

O elemento antecipatório poderá também financiar estudos de vocações e viabilidade econômica de cadeias locais, de forma a identificar potencialidades endógenas, ou seja, que o território originalmente possui, com a finalidade de garantir a perenidade das oportunidades socioeconômicas que serão estimuladas com a chegada do empreendimento.

Antes da chegada da obra, é necessário estruturar espaços de governança e participação social, além de arranjos que monitorem as ações previstas pela ADT. “Os custos para tais estruturas são mínimos, e os ganhos dessa antecipação para o território, enormes”, diz Daniela Gomes Pinto, coordenadora da iniciativa Grandes Obras na Amazônia.

Já ao longo da implantação do empreendimento, a diretriz é que sejam priorizadas ações que visem a indução e o fortalecimento das capacidades locais de gestão da infraestrutura e dos equipamentos instalados, bem como das atividades locais voltadas para o desenvolvimento econômico das cadeias produtivas.

Após a fase de obras do empreendimento, o cenário muda de figura e requer outras ações. O território sofre um acelerado desaquecimento econômico, somado à desmobilização de estruturas físicas, de serviços e profissionais. Com isso, os autores reforçam que o fomento ao empreendedorismo deve ser continuado, com possibilidades de incentivos adicionais para bons empreendedores, de forma a perenizar as cadeias produtivas locais. “Também é importante a aplicação de parte do monitoramento na conservação de áreas protegidas e no controle do desmatamento, de forma a identificar vetores não previstos de impactos ambientais.”

Esta figura esquematiza a demanda por investimentos ao longo do tempo:

figura 1

Diretrizes e aprendizados

Essas são algumas das recomendações que resultaram de um amplo diálogo entre cerca de 130 organizações, de diversos setores da sociedade civil, movimentos sociais, academia, setor empresarial e poderes públicos local, estadual e federal, em mais de 30 reuniões de grupos de trabalho, plenárias e seminários em Belém, Altamira, Brasília e São Paulo.

Desse extenso processo, iniciado em maio de 2015, foram construídas diretrizes para o tema de Instrumentos Financeiros, além de outros cinco: Planejamento e Ordenamento Territorial; Capacidades Institucionais; Crianças, Adolescentes e Mulheres; Povos Indígenas, Comunidades Tradicionais e Quilombolas; e Supressão Vegetal Autorizada.

A discussão sobre Instrumentos Financeiros levou a algumas mensagens finais que servem de aprendizado para evitar erros em futuros empreendimentos, quando se trata de desenvolvimento local: perceber a importância dos processos participativos e governança adequada e independente para a escolha dos investimentos, tomar decisão de forma profissionalizada e independente e seguir critérios claros por meio de processos transparentes.