Por Bruno Toledo
Janeiro de 2015. Auge da crise hídrica no Sudeste. Em São Paulo, milhões de pessoas sofrem com as restrições no fornecimento de água em pleno verão. As chuvas, tão esperadas para interromper a estiagem que atingia a região desde o ano anterior, ainda não retornaram. O Sistema Cantareira, responsável pelo abastecimento de boa parte dos moradores da Grande São Paulo, sobrevive com a exploração da sua reserva técnica, popularmente apelidada de “volume morto”.
O cenário nos reservatórios ressecados era desolador. No entanto, a poucos quilômetros dali, dentro da cidade de São Paulo, a principal represa da região continuava cheia, como se não estivesse sem chuvas há meses. Ainda que sozinha não fosse capaz de compensar as perdas no Sistema Cantareira, a Represa Billings poderia aliviar as dificuldades vividas pelos paulistanos no período mais crítico da estiagem. No entanto, isso nem sequer foi imaginado. Não porque não se quisesse – mas porque era praticamente inviável.
A água da Billings é extremamente poluída. Contaminada pelo esgoto, ela não é recomendada para qualquer tipo de consumo humano. Para tanto, seria necessário um alto investimento em tratamento, o que seria custoso e demorado.
Não precisamos ir tão longe para ver quão surreal é a falta d’água em uma região tão irrigada por rios como a Grande São Paulo. O Tietê e o Pinheiros, importantes para o processo de desenvolvimento da capital paulista desde o século XVI, também poderiam ajudar a aliviar o problema hídrico, mas a péssima qualidade de suas águas, igualmente contaminadas por esgoto não tratado, impede qualquer consumo humano.
A natureza como filtro d’água
Em um ensaio publicado em 1974, o economista Edmar Bacha cunhou um termo que resume o abismo de desigualdades que marca o Brasil: Belíndia, a mistura da Bélgica minúscula e abastada e da Índia gigantesca e miserável. Se o termo em si não sobreviveu no campo da economia (afinal, a Índia é hoje um país emergente em franco desenvolvimento econômico), permanece firme e forte no campo da realidade social.
Metade da população brasileira não tem esgoto tratado. Das 100 maiores cidades brasileiras, apenas dez tratam mais de 80% de seus esgotos. No Norte, região que concentra a maior parte da riqueza hídrica do Brasil, apenas 16,4% do esgoto é tratado. Isso significa que o grosso dos rejeitos líquidos vai para os rios e córregos nas cidades da região, contaminando os cursos d’água – e tornando-os inúteis para o uso humano (leia mais na edição da Página22 sobre saneamento).
O desafio do saneamento básico no Brasil é tão grande quanto na Índia “belindiana”, mas soluções inovadoras e simples de se realizar começam a aparecer e a mostrar resultados no País. Mais uma vez, a natureza é um elemento importante para sua efetividade e seu custo-benefício.
Duas Soluções baseadas na Natureza (SbN) selecionadas para esta edição de P22_ON trazem ferramentas que estão sendo implementadas para resolver o problema dos efluentes no Brasil. Unindo processos naturais, conhecimento científico, tecnologia, criatividade e persistência, elas nos mostram alguns caminhos para ampliar o tratamento de esgoto, seja nas grandes cidades, seja no campo.
A primeira delas – Jardins filtrantes, fábricas de água – aproveita processos naturais para criar sistemas mais eficientes e sustentáveis para tratamento de efluentes sanitários e industriais. Baseada na fitorremediação (descontaminação de ambientes aquáticos e terrestres à base de plantas), a Phytorestore Brasil propõe um modelo inovador para tratar o esgoto – em vez de estações tradicionais de tratamento, custosas e com problemas como forte odor e geração de lodo, belos jardins garantem uma descontaminação eficiente, inodora e de baixo custo operacional.
O projeto de jardins filtrantes foi desenvolvido pelo pesquisador francês Thierry Jacquet nos anos 1990, a partir de estudos sobre os processos de fitorremediação. Em 2004, Jacquet fundou a Phytorestore na França, trazida ao Brasil seis anos depois. A partir daí, a empresa vem desenvolvendo projetos de tratamento de efluentes baseados em uma solução que mescla tecnologia, natureza, paisagismo e eficiência.
“Se as árvores são conhecidas como os pulmões do mundo, os jardins filtrantes são como os fígados da paisagem”, diz Lilian Hengleng de Gregori, diretora-geral da Phytorestore Brasil. O grande diferencial dos jardins filtrantes, além da solução paisagística, é que o processo de descontaminação não gera nenhum tipo de lodo, o principal “vilão” do tratamento de efluentes.
O processo de depuração do efluente é realizado por meio das raízes de plantas macrófitas enraizadas, instaladas em jardins desenhados sob medida para o volume de efluente a ser tratado. A principal característica dessas plantas é não causar a chamada biocontaminação – ou seja, o material contaminado não sobe para a massa verde da planta. Isso permite que os jardins filtrantes sejam espaços visitáveis, sem riscos de contaminação.
O processo de tratamento ocorre em quatro etapas. Primeiro, o efluente passa por um tanque de aeração, onde um soprador mantém a matéria orgânica em movimento para que ela não se sedimente (e, consequentemente, forme lodo) e para “quebrar” todos os gases geradores de odor.
Em seguida, ocorre o tratamento aeróbico (eliminação de vírus e bactérias que morrem na presença do oxigênio), com o material orgânico sendo filtrado por um primeiro conjunto de plantas enraizadas direto na brita. Nessa primeira filtragem, o efluente entra verticalmente pelo jardim, de maneira que passe mais rapidamente (leva cerca de duas horas). Ao final dessa etapa, 85% da poluição foi removida do efluente, especialmente o poluente sólido, que serve como alimento para as plantas.
O efluente passa depois por um segundo jardim filtrante, onde se dá o tratamento anaeróbico (elimina os patógenos, que morrem na ausência de oxigênio). Aqui, o material ingressa no sentido horizontal, de forma que passe mais lentamente para realizar o processo de desnitrificação dos poluentes líquidos. Ao final, o efluente sofre mais uma redução da carga orgânica (11%).
A água que sai deste segundo filtro atende aos requisitos técnicos da Resolução nº 430 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) para lançamento em corpos d’água, como córregos e rios. No entanto, para oxigenar a água, ela passa por uma quarta etapa, a da “lagoa plantada”: aqui, ninfeias plantadas no fundo da lagoa oxigenam a água antes que esta seja liberada na natureza.
“Não inventamos nada. Todo o processo que implementamos é uma réplica daquilo que existe na natureza”, aponta Gregori. “O diferencial da nossa técnica está no dimensionamento: aproveitamos os processos naturais e o aplicamos sob medida para cada situação. Sabemos exatamente qual é o tamanho do jardim necessário para determinado volume de efluente, para determinado tipo de poluição e de contaminação.”
Entre os projetos de jardim filtrante implementados pela Phytorestore no Brasil, um destaque é o da unidade da L’Oréal na Ilha do Fundão, no Rio de Janeiro. O jardim trata o esgoto gerado no complexo e capta a água da chuva para reúso. Inaugurado em outubro de 2017, este jardim recebeu o prêmio Green Solutions Awards 2017 na categoria de Infraestruturas Sustentáveis, realizado na cidade alemã de Bonn, durante a 23ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP 23).
Saneamento em zonas rurais
A segunda SbN de tratamento de esgoto em zona de raízes vem sendo implementada na pequena Campos Novos (SC), resultado de uma parceria entre pesquisadores da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), a prefeitura local e a administração de uma pequena escola na zona rural da cidade. Trata-se da proposta Tratamento de esgoto realizado através de zona de raízes.
Como em muitos lugares no interior do Brasil, o distrito rural de Campos Novos não conta com sistema de coleta e tratamento de esgoto. Os rejeitos são depositados em fossas para decomposição natural. No entanto, principalmente no período de chuvas, o esgoto muitas vezes acaba escorrendo pelo chão, trazendo risco de infecções e doenças para as crianças da escola.
Para evitar esse problema, o professor Eduardo Bello Rodrigues, à época mestrando de Engenharia Sanitária da Udesc, procurou a administração pública local e a direção da escola em 2009 com um projeto de tratamento do esgoto por zona de raízes, processo similar ao desenvolvido pela Phytorestore.
Com o apoio das autoridades, ele construiu uma zona de tratamento utilizando plantas macrófitas, onde o esgoto bruto originado de um tanque entra e é distribuído horizontalmente. As plantas removem nitrogênio e fósforo, além de decompor a matéria orgânica.
“O diferencial desse modelo é o custo, que é muito inferior ao de qualquer sistema de tratamento, como lodos ativados, porque usa apenas a energia da gravidade, sem nenhum gasto de energia elétrica”, explica Renan Schlegel, pesquisador da Udesc. “O sistema em si opera sozinho, com vistorias periódicas simples.”
Além do sistema de tratamento de esgoto, o projeto também promoveu campanhas de educação e conscientização com alunos, professores e colaboradores da escola beneficiada.
Projetos como este podem ser importantes para viabilizar sistemas de tratamento de esgoto no interior, especialmente em áreas pouco povoadas. “No interior, é mais fácil você implementar sistemas assim, pois temos disponibilidade de terra”, explica Schlegel. “No entanto, na região rural, é complicado fazer redes de coleta, já que existem poucas casas. É mais fácil construir um sistema desse tipo para cada residência. Dez metros quadrados [espaço médio ocupado por um sistema de tratamento por zona de raízes] é praticamente nada no campo.”
A iniciativa na escola de Campos Novos abriu caminho para a estruturação de um projeto maior de saneamento ambiental rural, novamente coordenado pelos pesquisadores da Udesc em parceria com a prefeitura da cidade. Nesse novo programa, iniciado em março deste ano, o objetivo é levar tecnologias de saneamento a outras escolas públicas da região de Campos Novos, especialmente nas zonas rurais.
Inovação em prol da economia de água
O saneamento ajuda a resolver um problema posterior na questão hídrica: a contaminação de corpos d’água por efluentes sanitários e industriais. Porém, temos uma questão igualmente importante que antecede esta discussão: antes de o efluente ser efluente, ele é água. Muitas vezes, a água vira efluente não por uso efetivo, mas por desperdício.
A utilização excessiva de água é um problema crônico para a gestão hídrica. Alimentado por práticas abusivas de consumo, o desperdício pode comprometer a disponibilidade de água, ameaçando o abastecimento em situações críticas – como a que vivemos no Sudeste brasileiro entre 2014 e 2015 e a que estamos vivendo no Distrito Federal há quase dois anos, sem falar na Região Nordeste.
Parte importante desse desperdício acontece na indústria, grande consumidora de água em seus processos produtivos. Isso é uma realidade marcante para o setor de produtos de limpeza. Mais de 95% dos produtos vendidos no mercado é composto de água. Ou seja, o agente ativo de limpeza é praticamente diluído em litros e litros de água para reduzir sua força e criar maior volume.
O uso excessivo de água engatilha uma série de desperdícios que o setor alimenta: são emitidos gases de efeito estufa para transportar toneladas e toneladas de produtos de limpeza das fábricas até os supermercados, além do plástico e papelão de suas embalagens.
Para mudar essa história, um dos casos de SbN selecionados para esta edição de P22_ON busca aproveitar os ativos da própria natureza para criar produtos de limpeza sem o uso excessivo de água e com transparência na relação com o consumidor. Lançada neste ano por Marcelo Ebert, a YVY é uma marca de produtos de limpeza formulados com ingredientes de origem natural, sem a utilização de petroquímicos, cloro e fosfatos.
“Esta marca é resultado de dez anos de desenvolvimento de soluções em limpeza para empresas e indústrias”, explica Ebert. “Nossa proposta é mostrar que é possível limpar de verdade com ingredientes vindos da natureza, sem precisar de uma quantidade excessiva de produtos.”
A base dos ingredientes da YVY é o terpeno, composto encontrado em sementes, flores, folhas, raízes e madeira de plantas. Na natureza, o terpeno é responsável pela assepsia e pelo equilíbrio químico do meio. Com o uso da tecnologia desenvolvida pela YVY, pode-se extrair blends bactericidas, assim como especializados em solvência e neutralização de odores. A esses blends são acrescentados óleos essenciais, que farão o papel de fragrância dos produtos.
“Como os produtos da YVY são formulados apenas com ingredientes de origem natural, a chance de uma intoxicação ou de que você desenvolva um processo alérgico durante o uso é significativamente menor”, argumenta Ebert. “Além disso, evitamos a poluição da água e a contaminação de organismos aquáticos por substâncias petroquímicas.”
Além da composição química natural, os produtos da YVY não consomem água e outros recursos desnecessariamente, já que as embalagens, em formato de cápsulas recicláveis e usadas com borrifadores permanentes, contêm a quantidade exata do produto superconcentrado.
O modelo de negócios de YVY também é inovador para o setor. Por meio de um sistema de assinaturas, os clientes da marca recebem mensalmente cerca de 1 quilo de produtos de limpeza, entre desinfetantes, detergentes e outros, o que equivale a 15 quilos caso produtos convencionais fossem adquiridos.
Raio X das propostas
Proposta: “Jardins filtrantes, fábricas de água”
Proponente: Lilian Hengleng de Gregori – Phytorestore Brasil
Setor: Privado
Local: São Paulo, SP
Problema: Metade da população brasileira não conta com esgoto tratado. Das 100 maiores cidades brasileiras, apenas 10 tratam mais de 80% de seus esgotos. No Norte, região que concentra a maior parte da riqueza hídrica do Brasil, apenas 16,4% do esgoto é tratado. Isso significa que o grosso dos rejeitos líquidos vão para os rios e córregos nas cidades da região, contaminando os cursos d’água – e tornando-os inúteis para o uso humano. As estações tradicionais de tratamento são custosas e têm problemas como forte odor e geração de lodo.
Solução: O processo de depuração do esgoto é realizado por meio das raízes de plantas macrófitas enraizadas, instaladas em jardins desenhados sob medida para o volume de efluente a ser tratado. A principal característica dessas plantas é não causar a biocontaminação – ou seja, o material contaminado não sobe para a massa verde da planta. Isso permite que os jardins filtrantes sejam espaços visitáveis, sem riscos de contaminação, e ainda ofereçam valor paisagístico.
Além disso, o processo de descontaminação não gera nenhum tipo de lodo, o principal “vilão” do tratamento de efluentes.
Proposta: “Tratamento de esgoto realizado através de zona de raízes”
Proponente: Renan Marlon Schlegel – Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc)
Setor: Universidade
Local: Ibirama, SC
Problema: Como em muitos lugares no interior do Brasil, o distrito rural de Campos Novos não conta com sistema de coleta e tratamento de esgoto. Os rejeitos são depositados em fossas para decomposição natural. No entanto, principalmente no período de chuvas, o esgoto muitas vezes acaba escorrendo pelo chão, trazendo risco de infecções e doenças para as crianças da escola da zona rural.
Solução: Com o apoio da prefeitura, os pesquisadores da Udesc construíram uma zona de tratamento utilizando plantas macrófitas, onde o esgoto bruto originado de um tanque entra e é distribuído horizontalmente. As plantas removem nitrogênio e fósforo, além de decompor a matéria orgânica. O diferencial desse modelo é o custo, muito inferior ao de qualquer sistema de tratamento, como lodos ativados, porque usa apenas a energia da gravidade, sem nenhum gasto de energia elétrica.
Proposta: “YVY, produtos de limpeza que jogam limpo com você e com o meio ambiente”
Proponente: Marcelo Ebert – TerpenOil
Setor: Privado
Local: Jundiaí, SP
Problema: A maioria dos produtos de limpeza utiliza como matéria-prima compostos químicos que poluem os corpos d’água e contaminam organismos aquáticos com substâncias petroquímicas. Além disso, mais de 95% dos produtos vendidos ao consumidor é composto de água. Ou seja, o agente ativo de limpeza é diluído em litros e litros de água para gerar maior volume. Esse uso excessivo aumenta a emissão de gases de efeito estufa para transportar toneladas de produtos de limpeza das fábricas até os supermercados, além de exigir mais plástico e papelão em suas embalagens.
Solução: Os produtos da YVY são formulados com ingredientes de origem natural, sem a utilização de petroquímicos, cloro e fosfatos. A base dos ingredientes é o terpeno, composto encontrado em sementes, flores, folhas, raízes e madeira de plantas. Na natureza, o terpeno é responsável pela assepsia e pelo equilíbrio químico do meio. Além da composição química natural, os produtos evitam o consumo excessivo de água e outros recursos, já que as embalagens, em formato de cápsulas recicláveis e usadas com borrifadores permanentes, contêm a quantidade exata do produto superconcentrado.