Para amplificar o alcance do ISP e promover maiores ganhos socioambientais, o uso de novos instrumentos financeiros passa a ser chave, abrindo um horizonte de oportunidades para bancos e organizações

Por Sérgio Adeodato

O desafio de mobilizar investidores para a criação de bancos nada convencionais, com operações baseadas em causas, propósitos e valores para além do business as usual, ecoa no mundo empresarial como oportunidade frente a uma constatação cada vez mais recorrente: a de que a maior escala dos ganhos socioambientais passa necessariamente pela agenda das finanças.

“Se trabalharmos de forma articulada, faremos transformações relevantes, de modo que as iniciativas de investimento sejam coerentes com as causas”, ressalta Glaucia Barros, diretora programática da Fundação Avina e cofundadora da Rede Dinheiro e Cidadania Brasil, coletivo que integra pessoas e organizações no intuito de formatar uma instituição financeira dentro do novo paradigma, rumo a uma economia mais ética e sustentável.

A inspiração veio da parceria com o economista e empresário espanhol Joan Melé, ex-diretor do Triodos Bank – banco holandês de ampla atuação na Europa, um dos pioneiros no esforço de associar o capital à “economia real”, na busca do bem público e não da maximização do lucro, com financiamento de projetos que promovem valores culturais e beneficiam o meio ambiente e a sociedade. Difundido pelo Global Alliance for Banking on Values, o debate em torno do uso consciente do dinheiro foi levado a cinco países da América Latina pela Avina e pelo Sistema B, e no Brasil encontrou campo fértil no boom do empreendedorismo de impacto.

No propósito de guiar o fluxo do capital para onde se pretende fazer a diferença, tendo como norte os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas, a Rede Dinheiro lançou em 2018 uma chamada-piloto de negócios que atraiu 34 iniciativas, das quais três tiveram acesso a investimentos: a Morada da Floresta (compostagem de resíduos orgânicos), Impact Hub São Paulo (formação de empreendedores) e Vela Bikes (bicicletas elétricas). Em duas semanas, foi R$ 1,2 milhão aportado por cerca de 80 investidores.

“O desafio está mais em achar bons negócios do que pessoas ou instituições que queiram usar bem o dinheiro”, revela Barros. Falta de conhecimento e pouca divulgação são barreiras. Na análise da diretora, “a percepção do desafio climático como algo intangível de longo prazo dificulta a incorporação pela cultura política baseada no imediatismo”. Junto a isso, ela lembra: “Narrativas de governos adversas ao controle climático tendem a aumentar o atraso nas soluções, mas a dinâmica do investimento privado pode representar um contraponto”.

O plano é abrir uma segunda chamada de projetos em outubro, destinada ao mercado da moda, por meio da constituição de um fundo apoiado pelo Instituto C&A e outras organizações com olhar para toda a cadeia de valor – da produção de algodão às oficinas de costura. Com investimento de R$ 10 milhões, a iniciativa abrange temas como consumo hídrico e energia. Para Barros, “trabalhar nessa agenda é questão de oportunidade e dever cívico, mas faltam indicadores seguros sobre como os investimentos estão impactando o clima para o bem ou para o mal”.

Números confiáveis ajudam no engajamento, mas, para algumas lideranças, a atenção deve estar mais nos valores pessoais do que propriamente nos recursos. “Se as pessoas investirem conforme seus propósitos de vida, não faltará dinheiro às necessidades do planeta”, prevê Leonardo Letelier, diretor da Sitawi, organização que criou neste ano um ambiente digital de empréstimo coletivo que permite investir no mínimo R$ 1 mil em soluções para um mundo melhor. O modelo oferece rentabilidade mensal de 1%, com retorno em 24 meses: “Melhor do que deixar o dinheiro na poupança ou parado no banco”, destaca Letelier.

São negócios com produtos orgânicos, inteligência artificial para detectar vazamento de água e evitar desperdício, e gestão do sistema público de saúde, entre as sete iniciativas abertas a investimentos na plataforma, desenhada com R$ 500 mil do Instituto Sabin. “Instituições intermediárias entre quem doa e quem recebe são essenciais para a capacitação dos projetos nascentes e a multiplicação do impacto – e sem elas, por exemplo, o arroz não chega ao mercado”, compara Letelier. O capital filantrópico é fundamental no apoio à construção de novos mecanismos de financiamento, inclusive formatos que popularizam a doação e democratizam o segmento.

Ao dar impulso a soluções na fase inicial, o capital filantrópico reduz os riscos do negócio e viabiliza a chegada de outros mecanismos de investimento, resultando na maior escala de recursos. “Em tese, quanto maior o fôlego de negócios sustentáveis e escaláveis, menor é a necessidade de recursos investidos sem retorno financeiro, mas locais como a Amazônia – centro das atenções globais no contexto da mudança climática – precisam continuamente desse empurrão, devido às peculiaridades geográficas, econômicas, sociais e culturais”.

Na soma de esforços, a Sitawi planeja criar uma versão amazônica da sua plataforma de empréstimo coletivo, de forma a atender investidores de vários perfis que queiram obter retorno financeiro mantendo a floresta em pé, em contribuição ao controle climático. Focado em soluções em estágio mais maduro, o novo “banco” será estruturado com apoio financeiro do Instituto Humanize, voltado à agenda das cidades e ao uso sustentável de recursos naturais. “O modelo tem chancela que dá segurança ao investidor e permite enxergar o que acontece com o dinheiro lá na ponta”, ressalta a diretora executiva do instituto, Georgia Pessoa.

Criado em 2017 para aumentar o impacto dos investimentos sociais do empresário José Roberto Marinho, o Humanize possui programas junto a cadeias produtivas do cacau, do mel e da pesca, além de apoiar bancos de sementes, negócios de impacto socioambiental e melhoria da gestão pública, sempre por meio de alianças e parcerias. “Por trás das questões ambientais estão os agentes de mudanças e, por isso, a busca de escala requer qualificação de pessoas com ação compartilhada entre governo e Terceiro Setor”, argumenta Pessoa.

Grande parte das oportunidades no contexto do ISP concentra-se em ações de cunho local para um problema global. É o caso da mitigação e adaptação à mudança climática nas cidades, com novos modelos de mobilidade e habitação, e no meio rural, por meio do apoio a uma agricultura mais resiliente, por exemplo. O saneamento básico se destaca como frente de atuação: “Iniciativas-piloto devem contribuir para políticas públicas para maior escala dos benefícios”, analisa Marussia Whately, idealizadora da Aliança pela Água – articulação da sociedade civil criada em 2014 para enfrentamento da crise hídrica em São Paulo e construção de uma nova cultura de cuidados com esse recurso vital.

“A partir disso, o tema da água em suas diferentes dimensões – saúde, meio ambiente e insumo para a economia – ganhou centralidade e está mobilizando a criação de políticas”, reforça a consultora. Entre os exemplos, está a Lei Estadual nº 17.104/2019, que instituiu em maio a Política Municipal de Segurança Hídrica e Gestão das Águas na maior capital do País, São Paulo.

O cenário regulatório impulsiona arranjos institucionais capazes de replicar soluções e impactar o cidadão na ponta. Mas, na opinião de Whately, é preciso maior clareza entre o ISP e os entes públicos: “a governança da água é complexa por envolver diversos interesses e o entendimento sobre isso é desafiador às empresas e suas fundações”. Para ela, “trata-se de um sistema movido por crises que requer continuidade das ações”.

Inovar é preciso, bem como manter vivas e operantes instâncias criadas no passado, como avanço na gestão hídrica, a exemplo dos Comitês de Bacia, em que as decisões sobre obras e outros investimentos – pelo menos em teoria – são participativas (mais no box a seguir). Nas bacias hidrográficas, a crescente noção de risco influencia ações empresariais para além de reduzir o consumo hídrico ou o impacto direto de suas operações a comunidades. A mudança da cultura empresarial nas lições de casa, dizem analistas, potencializa um ambiente favorável a investimentos privados em uma perspectiva mais ampla e estruturante, no acesso à água como um bem público – o que muitas vezes ocorre bem longe das fábricas.

“Vamos além da eficiência intramuros”, destaca Ornella Vilardo, gerente de sustentabilidade do Grupo Heineken no Brasil. Para atingir a meta geral de devolver ao meio ambiente a mesma quantidade de água captada para as bebidas, a cervejaria mede o risco hídrico nas regiões onde opera de forma a priorizar investimentos em ações de longo prazo onde a escassez é mais acentuada.

O olhar se amplia para estratégias não necessariamente ligadas aos impactos diretos de suas operações nas localidades. Ao lado da fábrica de Itu (SP), o Centro de Experimentos Florestais, mantido em parceria com a Fundação SOS Mata Atlântica, trabalha com educação ambiental e já recuperou 220 hectares. O plantio de mudas livrou a unidade local da Heineken (à época, Brasil Kirin) dos impactos da crise hídrica de 2014. E agora o núcleo desenvolve pesquisas sobre o retorno financeiro da restauração florestal, viabilizando replicar as ações junto a produtores rurais e empresas de outras regiões.

“Vivemos um novo momento em que a agenda da água e do clima puxa estratégias de ISP que surfam na valorização econômica dos serviços da natureza”, afirma Márcia Hirota, diretora executiva da SOS Mata Atlântica. A organização tem 74% dos recursos vindos do investimento privado, que busca maior eficiência quanto aos impactos positivos.

A visão de território dá maior abrangência a ações antes pontuais e induz engajamento e articulação de longo prazo com os poderes locais. “Um dos caminhos”, diz Hirota, “é fortalecer as demandas do empreendedorismo e do desenvolvimento associadas ao clima e à água, prevendo a criação de mecanismos financeiros, porque alguém precisará pagar a conta”.

Para Samuel Barrêto, gerente nacional de água da The Nature Conservancy (TNC), “a complexidade da questão impede caminhar sozinho”. Na Coalizão Cidades pela Água, a ONG desenvolve projetos apoiados por recursos privados – inclusive de empresas concorrentes – para aumento da segurança hídrica em 12 regiões metropolitanas brasileiras via recuperação de áreas estratégicas para o abastecimento público, no total de 250 cidades, mobilizando recursos de R$ 215 milhões até o momento. “Devemos transformar ciência em política pública com mais intervenções que superem a fase do diagnóstico: só exame de sangue não resolve; é preciso remédio para baixar os índices negativos do açúcar ou do colesterol”, ilustra Barrêto. E o investimento social das empresas pode ampliar as chances de tratamento.

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Recursos privados para recompensar quem protege a água

A cor marrom do Rio Miringuava, importante fonte hídrica da Região Metropolitana de Curitiba (PR), acende o sinal de alerta. Além do impacto devido ao barro da erosão do solo, o fantasma do racionamento ronda indústrias, cultivos agrícolas e uma população de 230 mil pessoas em tempos de seca – insegurança que poderá se tornar ainda mais perigosa com a mudança climática global.

O quadro de riscos socioambientais na região levou à criação do movimento Viva Água, liderado pela Fundação Grupo Boticário (FGB) para colocar em prática um plano coletivo de melhoria da infraestrutura natural com reflorestamento e proteção de nascentes, conscientização ambiental e apoio a negócios sustentáveis, como turismo rural e agricultura orgânica (mais no Baú).

Lançada em julho, a iniciativa traz como novidade a aliança do investimento social de empresas ao Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) – mecanismo financeiro que remunera produtores rurais pela conservação da água e outros recursos vitais da natureza. Juntamente às ações de desenvolvimento local, o modelo será mantido por um fundo filantrópico que, até o momento, reúne 15 empresas com meta de investir R$ 25 milhões, em 10 anos.

Cerca de 1,5 mil proprietários rurais foram mapeados para uma possível adesão ao programa de PSA que está sendo desenhado em parceria com a prefeitura de São José dos Pinhais (PR), com foco na segurança hídrica. Além da produção de hortaliças, a região se destaca por concentrar colônias de imigração polonesa e alemã, com vocação para roteiros enogastronômicos.

Um elemento estratégico da agenda da água, que é muito territorializada, é trabalhar a governança e os arranjos institucionais para que poderes locais, regionais e nacionais operem de forma conjunta e sinérgica. O planejamento da paisagem, visando harmonizar interesses e ganhos ambientais, sociais e econômicos para todos que compartilham esses espaços, permite construir pontes entre o público e o privado e tem se apresentado como nova fronteira ao ISP.

Investir em Soluções baseadas na Natureza (SbN) é uma forma de ampliar o engajamento para boas práticas produtivas nos territórios e de garantir sustentabilidade ao próprio negócio. “O investimento privado ajuda a aumentar a dimensão dos recursos de PSA, hoje obtidos em baixa escala principalmente por meio da cobrança pelo uso da água no âmbito de alguns Comitês de Bacia, além de iniciativas pontuais de fundos públicos”, aponta Renato Atanazio, especialista do tema na FGB.

Nas Bacias Hidrográficas dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ), em São Paulo, responsáveis pelo abastecimento da região mais rica e industrializada do País, menos de 13% dos valores arrecadados são aplicados em infraestrutura natural, onde as iniciativas de PSA se enquadram, enquanto a maior parte dos recursos se destina a sistemas de tratamento e distribuição de água. “Convivemos com o círculo vicioso entre a falta de projetos de PSA e a carência de fontes perenes de investimento”, analisa Atanazio, que recentemente defendeu dissertação de mestrado sobre o tema, na Universidade Tecnológica Federal do Paraná.