O eixo que faz mover as agendas social e ambiental ainda patina no Brasil. Para uma evolução no campo da ética, a governança deve superar a cultura patrimonialista e promover o engajamento de stakeholders. Especialistas também defendem ações mais explícitas sobre temas da sociedade, como a defesa da democracia

Por Amália Safatle _ Foto: Randy Fath/ Unsplash

Alguém imaginaria que um peão pudesse movimentar o jogo de xadrez a ponto de levar o rei a um xeque-mate? Pois foi o que fez o Engine Nº 1, um fundo de investimentos detentor de 0,02% da ExxonMobil, a gigante texana de petróleo e gás avaliada em US$ 250 bilhões. Com menos de um ano de vida, o Engine nem tinha uma bandeira ambiental, mas percebeu os riscos de investir em uma companhia baseada em energia fóssil sem um plano de transição energética neste mundo que precisa se descarbonizar o quanto antes.

Mesmo sem representatividade numérica, o Engine Nº 1 fez tanto barulho que arregimentou outros investidores. Com isso, na assembleia para eleger os membros do Conselho, em maio deste ano, esses investidores conseguiram trocar dois dos integrantes e um terceiro em junho, a contragosto da gestão da Exxon.

Para a advogada e consultora independente em sustentabilidade Ana Luci Grizzi, esse é um dos casos mais emblemáticos de stakeholder stewardship, ou engajamento de partes interessadas, uma expressão cada vez mais usada neste momento em que a governança ganha holofotes por meio da onda ESG. Isso significa que as decisões nas empresas deixam de ter apenas o foco no interesse de seus controladores e passam a atender também às demandas dos diversos atores com os quais a empresa se relaciona, a exemplo dos investidores. Estes, por sua vez, reivindicam amplo acesso a informações confiáveis, para que possam continuamente cruzar e checar dados antes de tomar suas decisões.

O Brasil ainda engatinha nessa direção. Grizzi, atuante no tema há mais de 20 anos, avalia que apenas algumas empresas têm avançado nesse sentido, e o País se encontra na fase inicial de entender a relevância da governança. Ela estima que os efeitos práticos só devem surgir a partir de 2022 ou 2023. “Estamos em um processo de educação (mais sobre formação do mercado nesta reportagem). A liderança está aprendendo o que é o ESG, tirando o G daquela estrutura exclusiva para ética e compliance [conformidade a regras], e abrindo a governança para o aspecto mais amplo do engajamento”, diz.

Isso não quer dizer que assuntos como ética e combate à corrupção já estejam resolvidos no ambiente empresarial, bem ao contrário. “Os pilares da ética e da transparência estão completamente inseridos nas diretrizes ESG, mas agora devem tomar outro rumo porque, se antes eu agia apenas para seguir uma lei anticorrupção, hoje tenho de agir diante do risco de os meus consumidores me cancelarem e do risco de meus investidores checarem os dados que eu publico e começarem a me questionar sobre as diretrizes do negócio”, diz Grizzi, citando o caso da ExxonMobil.

“Por isso, engajamento e transparência são dois assuntos que você não consegue desconectar: eu preciso ter transparência para que haja engajamento, enquanto transparência sem engajamento não adianta nada”, resume.

O engajamento de stakeholders é um componente crucial da governança para que a força-motriz do capitalismo deixe de girar apenas em torno da busca de lucro pelos controladores e considere os impactos – negativos ou positivos – gerados pela empresa ao longo de sua cadeia produtiva sobre as pessoas e o meio ambiente. É o chamado stakeholder capitalism, tido como uma evolução do sistema econômico, diante de todas as mazelas criadas pelo capitalismo que historicamente buscou o lucro a qualquer preço.

Por que a governança é central

Nesse contexto, a governança é o eixo central que determina o sucesso das outras letras do acrônimo, que representam o social e o ambiental. “Não existe E e S sem o G”, afirma Valéria Café, diretora de Influência e Vocalização do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC). Segundo ela, é difícil encontrar uma empresa que tenha um bom programa social e ambiental sem possuir uma boa governança. “Em geral, o G vem antes e estrutura todo o restante”, diz ela, que define governança como a forma pela qual se estruturam todas as redes de relacionamento entre os diversos atores de uma organização.

Nessa estruturação, o papel do Conselho de Administração torna-se central, pois representa o lócus onde estratégia e sustentabilidade se encontram. “O Conselho, por ter visão de longo prazo, coloca a sustentabilidade no centro da estratégia da empresa”, diz Leila Loria, presidente do Conselho de Administração do IBGC.

Na opinião de Ana Luci Grizzi, o G é a letra mais importante do ESG. Uma vez que a governança exista, é possível alçar os outros assuntos para o nível de liderança para, pelo menos, começarem a ser discutidos. Com isso, o social e o ambiental passam de um tratamento meramente operacional dentro da empresa para ganhar um status de ordem estratégica.

“Enquanto o social e o ambiental estiverem sob o chapéu operacional, que segue a diretriz de curto prazo, as demandas que chegam não terão eco ou serão feitas a contragosto [da liderança e dos acionistas], pois diminuem a rentabilidade daquela operação”, explica a consultora. Isso porque representa um custo imediato com retorno no médio e longo prazos – isso se a empresa conseguir contabilizar esse retorno. “Mas, quando se tem uma governança instalada, é possível sair do processo de otimização do processo produtivo e passar para o planejamento estratégico.”

A pandemia, segundo ela, ajudou a jogar mais luz sobre a importância da governança no Brasil, que já tinha ganhado força com a Lei Anticorrupção (ou Lei da Empresa Limpa), de 2013, e com a Operação Lava Jato, deflagrada pela Polícia Federal em 2014. Até março de 2020, quando a pandemia começou a se espalhar no Brasil, as áreas de compliance eram basicamente voltadas, de acordo com Grizzi, para questões de corrupção e ética, e totalmente desconectadas dos aspectos ambiental e social. “Com a pandemia, o assunto tomou outro rumo e incorporamos o assunto de ESG no Brasil.” Mas ela alerta que não basta a empresa ter uma estrutura formal, é preciso uma governança séria na prática.

Por meio de duas iniciativas, o IBGC monitora o desempenho das empresas brasileiras em governança e mostra que há grande espaço para melhoras, principalmente entre as de capital fechado. Um levantamento preenchido por cerca de 100 empresas fechadas indica pontuação de 3,5 sobre dez. Entre as de capital aberto, com ações negociadas em Bolsa, a nota média é melhor: 6,9, segundo a pesquisa Pratique ou Explique: Análise Quantitativa dos Informes de Governança.

Sobre a pesquisa, Andoni Hernández Bengoa, coordenador da área de ESG do Demarest Advogados, lembra que entre as 360 empresas nacionais que apresentaram o Informe de Governança, a taxa de aderência às práticas do Código Brasileiro de Governança Corporativa ficou em apenas 54,3%, número 3,2% acima do registrado em 2019. Além disso, de acordo com a edição de 2021 do índice SAHA, que avalia comparativamente o grau e a qualidade das práticas de governança corporativa adotadas em diferentes países, o Brasil tem um total de 50 pontos, 20 a menos que a média mundial de 70 pontos (leia mais neste artigo de Bengoa para a Página22).

Além disso, ainda não se veem no Brasil papéis atrelados a metas de governança, como observa o conselheiro independente Geraldo Affonso Ferreira, certificado pelo IBGC, membro da Confraria da Governança.

Neste artigo para a Página22, Ferreira comenta o sucesso de venda dos títulos de dívida ligados à sustentabilidade, como as emissões dos sustainability-linked bonds de Suzano e Klabin, que tiveram demandas chegando a nove vezes a oferta. Ao mesmo tempo, alerta: “A onda dos green bonds tem negligenciado a governança”. Enquanto os títulos verdes ou de sustentabilidade se concentram em ações e metas ambientais, e raramente nas sociais. Infelizmente, ainda não vemos papéis atrelados a metas de governança.

Observação na mesma linha é feita por Bengoa: “Lá fora, é comum que diretores sejam remunerados por objetivos de governança”, algo que não se replica aqui. Para ele, é preciso haver um movimento top down, capitaneado pela liderança, que permeie, em cascata, todos os níveis da empresa. Ele vê processos que são adotados internamente para atingir todas as frentes com compliance, mas muitas vezes são “para inglês ver”.

Um exemplo: muitos canais de denúncia de corrupção existem, mas não são anônimos, e é possível identificar o denunciante. “Ainda que a empresa tenha um canal formalmente, ninguém se atreve a usá-lo porque pode ser retaliado. O canal de denúncias precisa ser externo à companhia”, diz Bengoa. Para o advogado, uma empresa mostra-se transparente, por exemplo, pela forma como valoriza o canal de denúncias, faz relatório reportando o recebimento de casos e os encaminha adequadamente.

Cultura de dono

Bengoa vê no Brasil distintos níveis de evolução em governança, mas destaca a “cultura de dono” que ainda prevalece no setor privado brasileiro. “Governança, no sentido de compliance, exige abrir mão desse controle e se expor. Muitas empresas brasileiras ainda não implementaram processos de compliance para combater a corrupção.” E em relação às que implementaram, cumprir à risca o que está na lei pode não ser o bastante porque, segundo ele, a lei às vezes é insuficiente. Especialmente no Brasil, em que o mercado de capitais ainda é imaturo se comparado aos mercados americano e inglês.

Embora o Brasil historicamente tenha se destacado de modo positivo na arena internacional em relação a temas ambientais – com uma legislação robusta e um protagonismo climático, por exemplo –, Bengoa avalia que o progresso do ESG no País tem sido mais reativo que ativo, impelido pela tendência internacional.

A governança, portanto, parece ser um elemento que tem travado o avanço das demais agendas. “A atenção à governança é muito rasa no Brasil. É o calo das empresas”, afirma Ferreira. Ele aponta que o empresário brasileiro em geral, caracterizado por uma tradição patrimonialista que vigora no País, não tem a cultura de prestar contas. “Ele faz por obrigação, para atender às regulações da B3 e às instruções da CVM [Comissão de Valores Mobiliários]”, afirma.

Essa cultura, em sua opinião, afeta o stakeholder stewardship (o engajamento das partes interessadas). Uma asset (gestora de investimentos), por exemplo, não acompanha a empresa de perto como deveria e nem exige as melhores práticas de governança, colocando em risco sua responsabilidade fiduciária. Segundo Ferreira, muitas assets têm receio de desafiar o controlador das empresas e, com isso, perder possíveis investidores que fazem parte da rede de relacionamentos dos empresários.

O consultor cita a tese de doutorado defendida por Silvia Maura Rodrigues Pereira no Instituto Coppead da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Ativismo e engajamento: perspectivas de investidores institucionais brasileiros, na qual ela aponta (em inglês) a concentração do mercado como um dos fatores que inibem o ativismo – a maior parte das empresas possui acionistas controladores com mais de 50% do capital votante. No Brasil, o próprio entendimento de ativismo, segundo pesquisa realizada por Pereira, tem conotação de confronto e, por isso, é evitado. “A cobrança dos investidores por melhorias normalmente ocorre quando a ‘vaca já foi pro brejo'”, diz Geraldo Affonso Ferreira, que foi executivo C-Level do setor de papel e celulose por 30 anos.

Além da concentração de mercado e da figura do controlador definido, que mantém a “cultura de dono” nas empresas brasileiras, faz falta um Conselho de Administração independente, do qual os integrantes não tenham vínculo com o controlador da empresa e se sintam livres para colocar na mesa os assuntos estratégicos, ainda que sejam incômodos ou desafiadores. Ferreira também aponta para a falta de métricas sobre governança que permitam a avaliação por investidores externos, falta de conselhos fiscais e de avaliações de terceira parte independentes.

Uma vez que o Conselho é um órgão estratégico para a adesão a práticas ESG, sua composição deve ser, além de independente, diversa, de modo a representar o mais variado leque de partes interessadas e, assim, seguir na direção do capitalismo de stakeholders. Para Ana Siqueira, fundadora da Artha Educação e membro do comitê de advocacy do CFA Society Brasil, não basta cumprir metas de diversidade de gênero ou étnico-racial, mas garantir que haja diversidade cognitiva em sua composição, ou seja, representatividade de várias visões de mundo, culturas e experiências, inclusive intergeracionais.

Somente assim, segundo ela, a empresa deixará de olhar o retrovisor em suas decisões e passará a visualizar o futuro. “Mas a diversidade nas empresas brasileiras é muito baixa. O histórico patrimonialista e patriarcal não contribui para que haja diferentes visões juntas”, diz. Além disso, é comum o controlador fazer parte do Conselho de Administração, o que tende a prejudicar o seu caráter independente.

A prática existe mesmo em empresas do Novo Mercado da B3, como a Suzano, que integra o grupo desde 2017. Camila Nogueira, diretora de Relações com Investidores da companhia, afirma que há muito questionamento sobre esse ponto, mas que “na Suzano a presença do controlador no Conselho é bem-vinda porque ele é um acionista com visão de longo prazo, inclusive sobre questões sociais e ambientais”. Segundo ela, deter o conhecimento sobre o negócio é positivo e há diversos estudos mostrando que a presença do controlador é benéfica. “O que o sistema tem de garantir é o alinhamento entre o controlador e os acionistas minoritários”, diz.

“Quando a gente olha para corporations, que não têm a figura do controlador, o controle é difuso, o management [os gestores] acaba assumindo um compromisso muito maior e pode tomar decisões que favoreçam o curto prazo em detrimento do longo prazo, fazendo com que o acionista fique vulnerável”, argumenta.

Nogueira afirma que a família Feffer foi se retirando gradualmente do Conselho para os independentes entrarem, e estes ocupam 70% das vagas (conforme o Novo Mercado). Em 2018, a Suzano foi listada na NYSE, a Bolsa de Valores de Nova York, no segmento mais alto de governança para companhias externas. Segundo ela, os investidores estão preocupados com a visibilidade sobre o risco que correm e isso vai se converter, em última análise, em custo de capital. Com isso, a boa governança tem avançado para que esse custo seja o menor possível.

Regulamentação: vale esperar?

Para a governança evoluir, Ferreira acredita que é preciso buscar um mercado franco e aberto, com transparência, equidade, prestação de contas e regulação vigiada por um “xerife” temido. Enquanto nos Estados Unidos a Securities and Exchange Commission (SEC) é considerada eficiente e apoiada por uma Justiça célere, no Brasil a CVM é um órgão menos acreditado.

Questionada pela reportagem sobre como a autarquia poderia contribuir para “elevar a régua” na governança brasileira, por meio de regulamentação e fiscalização mais efetivas, a CVM respondeu, por meio de nota, que a governança corporativa no mercado de capitais brasileiro nunca deixou de se aprimorar. “Entre várias medidas regulatórias nos últimos anos, destacamos a adoção do voto à distância, a criação do informe sobre o Código Brasileiro de Governança Corporativa (CBGC) e as reduções de quóruns para exercício de direitos por parte de acionistas.”

Ainda segundo a nota, a CVM possui iniciativas em andamento destinadas a aprimorar a prestação de informações das companhias brasileiras, tais como a audiência pública para revisão da Instrução CVM nº 480, que busca aprimorar a prestação de informações ligadas a questões ESG. A audiência pública ainda se encontra em fase de análise.

A CVM lembra também que a autorregulação tem um importante papel a desempenhar nesta matéria, como pode atestar a relevância adquirida pelo Novo Mercado e pelo CBGC. “Nesse sentido, a Superintendência de Relações com Empresas recomenda a leitura do CBGC, que considera uma boa prática de governança corporativa que as companhias abertas, por exemplo, tenham seus órgãos de administração e posições gerenciais compostos com diversidade de conhecimentos, experiências, comportamentos, aspectos culturais, faixa etária e gênero, ou seja, pessoas com competências complementares e habilitadas para enfrentar os desafios da companhia”, diz o comunicado.

Para Ana Luci Grizzi, o passo da CVM tem sido pequeno e muito tímido se comparado ao que existe na SEC dos Estados Unidos e na European Securities and Markets Authority, que reúne todas as comissões de valores mobiliários da Comunidade Europeia. “Mas se a gente olhar o Banco Central, a figura muda completamente. O BC surpreendeu positivamente e publicou três consultas no primeiro semestre [82, 85 e 86]. Uma sobre norma para crédito rural sustentável, e outras duas sobre avaliação de risco e sobre a publicação de relatórios sociais, ambientais e climáticos”, diz.  Em 15 de setembro, o BC anunciou uma série de normas na agenda de sustentabilidade (consulte aqui as novas resoluções). 

Adicionalidade

Mitigar riscos, entretanto, já não é o bastante. Em pesquisa realizada em março de 2020 com 2.800 membros do CFA Institute,   35% dos respondentes disseram que a boa governança deve se destinar à melhoria do resultado financeiro, informa Ana Siqueira. Para ela, hoje é mais fácil determinar a correlação entre a falta de sustentabilidade e riscos de episódios negativos como desastres e corrupção do que mostrar a correlação entre as boas práticas e os casos positivos. “Mas cada vez existem mais estudos internacionais que apontam a correlação positiva, e o Brasil tem um trabalho a ser feito nesse sentido”, diz.

Por isso, ela defende que as empresas não devem aguardar regras que mitiguem riscos, e sim partir para uma estratégia mais proativa e menos reativa. “Tem muita gente esperando regulamentação, mas, ao fazer isso, está abrindo mão de tempo precioso para construir o seu road map“, afirma. “É como no jogo de xadrez: sem estratégia, você recebe um xeque-mate. Então, qual é a sua estratégia de sustentabilidade?”, provoca.

Bengoa, do Demarest, vê assim a linha evolutiva da governança: “Passamos por várias fases, a primeira era por compliance, ou seja, não fazer nada ilegal. A segunda, fazer coisas que não prejudiquem o ambiente e as pessoas. Temos todos os sensos de urgência movidos pela preocupação climática, mas isso já não é mais suficiente. Agora, além de não prejudicar, é preciso contribuir positivamente. Antes era só ser responsável, hoje é preciso gerar impacto positivo. Essa revolução semântica é importante”. É o que o consultor e ambientalista Fabio Feldmann chama de “adicionalidade” (leia mais na Entrevista desta edição).

Expressão técnica usada no tema da mudança climática, significa que uma atividade deve, comprovadamente, resultar na redução de emissões de gases de efeito estufa ou no aumento de remoções de carbono de forma adicional ao que ocorreria na ausência de uma atividade de projeto

Mas, ao mesmo tempo, Bengoa acredita que a evolução nas empresas se dá pela dor, assim como no ser humano. “Por isso falo em humanização das empresas. Você dificilmente consegue aproveitar as experiências de terceiros, só quando sente na pele.” Humanização também significa, em sua opinião, juízo de valor sobre pessoas, se são boas, éticas ou não.

Ética, anticorrupção e coerência

Ainda que o movimento de compliance tenha ganhado força no período pós-Lava Jato, os riscos continuam altos, na avaliação de Renato Morgado, coordenador do Programa de Integridade Socioambiental da Transparência Internacional – Brasil. “Basta olhar, nestes tempos de pandemia, quantos casos de corrupção no nível federal nós tivemos na relação entre o público e o privado na área de saúde. Isto mostra que o setor privado ainda precisa avançar muito”, diz. Segundo o relatório, as empresas pesquisadas obtiveram uma nota de 5,2, sobre 10, em programa anticorrupção e transparência organizacional (leia mais no quadro “De olho na corrupção”).

Morgado também chama atenção para o setor do agronegócio. Um estudo do De Olho nos Ruralistas mostra que o Instituto Pensar Agro – braço da Frente Parlamentar Agropecuária – é financiado por várias associações que, por sua vez, são bancadas por empresas individualmente.

Para ele, é preciso haver uma coerência entre o que as empresas anunciam, em termos de valores que possuem em relação à sustentabilidade, e ações de defesa de interesse que elas fazem direta ou indiretamente junto aos tomadores de decisão. “O ESG reforça essa cobrança de coerência”, afirma.

Morgado, inclusive, defende a regulamentação do lobby no Brasil, para aumentar a transparência em relação aos interesses privados na esfera pública. “A regulamentação do lobby não é interessante para setores que aproveitam a baixa transparência para a prática da corrupção ou para terem uma influência desigual em relação a outros grupos em um processo de tomada de decisão”, diz.

Mas apesar de ainda não haver regulamentação do lobby no Brasil, Morgado diz que nada impede as empresas de prestarem conta sobre a defesa de interesse que elas fazem direta ou indiretamente, o quanto investem, com quem dialogam e de que associações fazem parte. “Isso é o esperado dentro de uma lógica de ESG qualificada”, afirma.

Para além dos muros

A governança, na visão de Morgado, não se limita aos muros da empresa na medida em que pressupõe, também, a defesa dos direitos humanos na relação com os seus empregados e a comunidade afetada. Nesse sentido, ele avalia que é importante as empresas fazerem essa defesa de forma mais ampla enquanto política pública e funcionamento da democracia brasileira – especialmente em um contexto no qual a democracia tem sido atacada e os direitos fundamentais questionados e desrespeitados.

Mas a ligação entre a governança intramuros e a externa ainda é incipiente, na visão de Carlo Pereira. Ele lembra que o Pacto Global lançou uma plataforma para o ODS 16, o único dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável que diz respeito à democracia ao pregar Paz, Justiça e Instituições Eficazes. Segundo ele, jogar luz sobre o ODS 16 sai da lógica de que sustentabilidade em governança é discutir diversidade no Conselho de Administração. “Estão começando a se libertar desse pensamento”, diz.

Para ele, embora a “supremacia dos acionistas” ainda seja ensinada nas escolas de negócios, enfrenta hoje uma transição para uma governança de stakeholders, uma vez que há uma maior clareza do “calor que estão sentindo”. Ele se refere, por exemplo, ao Barômetro da Confiança, pesquisa elaborada pela Edelman, que continuamente indica uma preocupação em relação a temas pungentes da sociedade. E também a um levantamento do Pew Research, segundo o qual a maioria dos americanos entende que as empresas têm de ajudar a combater a polarização política.

Pereira inclusive vê isso com certa preocupação, na medida em que as pessoas passam a depositar grande expectativa de que as empresas vão resolver os problemas da sociedade, em busca de um “salvador da pátria” na forma de um CEO.

Mas Yacoff Sarkovas, ex-sócio da Edelman Brasil e consultor independente na Sarkovas Propósitos Corporativos, esclarece que o ESG não significa a empresa fazer o bem em substituição ao Estado, mas sim atuar com transparência e ética em relação ao que está sob o seu raio de atuação.

A seu ver, a questão da democracia ficou muito relevante com a emergência do populismo de direita no mundo, que atua com base na destruição dos fatos, na destruição semântica, e em disseminação de mensagens simplistas que atendem segmentos marginalizados e frustrados. “O Brasil se deixou capitular por esse processo. Está provado que isso é uma mazela inclusive para o mercado”, diz.

Sarkovas lembra que as empresas, por serem grandes agentes de transformação social, têm responsabilidade pública pelos direitos civis e, portanto, não podem ficar alheias a esse fenômeno. Mas ele reconhece que no Brasil a questão é mais complicada devido à cultura patrimonialista. Parte significativa do setor privado tem dependência direta ou indireta do Estado, inclusive com interesses casados, o que inibe a exposição e o posicionamento político.

Esses acontecem somente em momentos críticos – por exemplo, o manifesto em defesa do processo eleitoral eletrônico assinado por empresários e banqueiros, e o de associações do agronegócio em defesa da democracia, ambos publicados em agosto –, mas o desejável, segundo Sarkovas, é que o posicionamento seja contínuo e não dependa de anomalias como as que têm sido vistas no Brasil de hoje.

O consultor, inclusive, é autor de um artigo sobre ativismo empresarial na política /, no qual discorre desde o nascimento do Pensamento Nacional das Bases Empresariais (PNBE), no apagar das luzes do regime militar, quando empresários começaram a se posicionar publicamente sobre ações do Estado, passa pela criação do Instituto Ethos e pela candidatura dos empresários Ermírio de Moraes à prefeitura de São Paulo e de Guilherme Leal como vice de Marina Silva à presidência da República.

Mas o setor privado acabou buscando outros canais para atuar de modo cívico na sociedade, a exemplo da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps), que atua como um espaço de formação avançada de políticos, do movimento Todos pela Educação e da rede Uma Concertação pela Amazônia.

Para Mônica Sodré, diretora-executiva da Raps e participante da Concertação, a agenda ESG parte da premissa de que as empresas não vão mais ser vistas ou avaliadas somente pelo valor do que produzem, mas também pelo impacto positivo no planeta. Mas ela alerta que é preciso fazer isso no mundo da política também. “O nosso papel é fazer com que os políticos se apropriem desta agenda de uma maneira muito objetiva. Há um trabalho imenso pela frente, pois existe muito desconhecimento e desinformação sobre o que isso significa na prática”, diz.

De todo modo, Bengoa, do Demarest, identifica uma mudança na arena internacional. “Tradicionalmente não se misturava negócios com política, devido ao risco de exclusão. Hoje, com a demanda dos stakeholders e consumidores, isso está mudando. Desde fenômenos como o Black Lives Matter, empresas têm sido forçadas a se posicionar”, afirma.

A questão, segundo Sarkovas, é como isso se enquadra na agenda ESG e se transforma em indicadores monitoráveis. “Em relação à responsabilidade cívica, não tem quase nada nos frameworks. Em algum momento, diante dos ataques à democracia, esses frameworks vão acabar incorporando esse campo por uma questão de necessidade histórica”, estima Sarkovas (leia mais neste artigo).

Uma coisa é certa, na visão de Marcel Fukayama, cofundador e diretor do Sistema B no Brasil: os empresários e os investidores estão vendo o custo da omissão e do silêncio. “Não tem negócio bom em um país ruim, e não há como ter capitalismo em um país sem democracia. A gente está aprendendo isso na prática” (leia mais no pingue-pongue “Da mudança pela dor para a busca de impacto positivo”, a seguir). Nesse sentido, o rei está de fato em xeque-mate.

De olho na transparência

O mercado brasileiro conta, desde outubro, com o Observatório da Transparência. Trata-se de uma iniciativa do Conselho Consultivo da GRI Brasil, criada para dar visibilidade aos melhores relatos ESG corporativos. “Além de reconhecermos as empresas que mais se destacam no tema, apoiamos as demais nesse caminho ao compartilhar boas práticas. A transparência não é um fim em si mesma. É uma pauta estratégica que baseia a tomada de decisão e gera valor para a organização. Precisamos de referências que nos indiquem trilhas bem-sucedidas e facilitem o caminhar”, afirma Sonia Consiglio Favaretto, que preside o Conselho.

O levantamento, que contou com a parceria técnica da Resultante Consultoria e da Walk4Good, partiu da lista das 100 maiores empresas no Brasil e relatos ESG da KPMG. Dessas companhias, destacaram-se 73 com relatório ESG no País e, em seguida, foram aplicados filtros desenvolvidos com base nos 10 princípios da GRI (GRI Standards, 2016): Comparabilidade, Tempestividade, Confiabilidade, Materialidade, Contexto, Equilíbrio, Completude, Exatidão, Inclusão de Stakeholders e Clareza.

A lista final das empresas com maior grau de transparência, que passaram pelo filtros e análises de controvérsias, é: Banco do Brasil, Itaú Unibanco, Bradesco, BRF, Cemig, Cielo, CPFL, EDP, Eletrobrás, Engie, Natura, Petrobrás, Renner e Suzano. Dessas 14 empresas, nove estão no Novo Mercado e nos demais níveis 1 e 2 de governança corporativa; e 13 fazem parte da carteira do Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE) da B3. Saiba mais neste webinar.

Da mudança pela dor para a busca de impacto positivo

Para Marcel Fukayama, do Sistema B, a pressão pela sobrevivência humana trará mudanças estruturais nos mercados e em questões regulatórias

Foto: Arthur Fujii/ Divulgação

 

Os elementos de governança, como transparência, defesa das melhores práticas de gestão, segurança institucional, combate à corrupção, são questões que devem extrapolar os muros da empresa? A permeabilidade da empresa com temas da sociedade é algo que tende a entrar no radar de investidores?

Isso já está acontecendo e é um caminho sem volta. Alguns fatos evidenciam isso, como em agosto de 2019, quando o Business Roundtable, formado por mais de 180 CEOs das maiores empresas dos Estados Unidos, soltou um manifesto a favor da geração de valor compartilhado e não à lógica da primazia do shareholding, de maximização de lucro. Esse movimento acabou se desdobrando em várias iniciativas de reset no capitalismo. Foi tema até de um editorial no Financial Times cerca de dois meses depois. Isso culminou no Fórum Econômico Mundial que, em janeiro de 2020, atualizou seu manifesto pela primeira vez desde sua criação, para colocar na primeira linha o chamado capitalismo de stakeholders. Aí a pandemia expôs várias questões e acentuou uma mudança no mercado de capitais, por conta do boom de investimentos ESG.

Hoje, formatos jurídicos e estruturas legais de empresas já são criados de maneira a considerar esses stakeholders nas decisões de curto e longo prazo. Ou seja, o melhor interesse da empresa deixa de ser a maximização de valor para o acionista e passa a ser um valor compartilhado entre múltiplos stakeholders.

Além disso, mais na ótica de riscos, a gente vê situações que têm acentuado essa conversa, desde [os desastres de] Mariana e Brumadinho, que trazem questões mais estruturais sobre o impacto da empresa na comunidade e no meio ambiente e como a empresa considera essas dimensões na sua decisão e não apenas a dimensão econômica. E o próprio caso do Carrefour no ano passado [em que um cliente negro foi morto pelos seguranças].

Sempre pela dor?

Sim. Isso porque os investidores brasileiros ainda operam na lógica de gestão de risco – neste caso, social, ambiental e de governança. Agora, o que estamos vendo é uma mudança no mercado de capitais, e isso já começa a se desdobrar nas empresas por exigência do investidor, e uma mudança regulatória, porque o investidor não quer apenas fazer gestão de risco. Ele entende que não adianta simplesmente parar de emitir gases, precisa de modelos de negócio que gerem impacto positivo. Essa mudança de lógica é absolutamente estrutural. Aí vamos começar a migrar dessa lógica de mudar pela dor e passar para a busca de impacto positivo.

O sr. está otimista em relação a isso? Quem estaria puxando essa tendência?

Temos uma pressão de sobrevivência. Pela lógica da governança atual, hoje é perfeitamente cabível e legalmente possível que uma empresa tenha um impacto ambiental negativo, mas como ela paga seus impostos, gera emprego e renda, está tudo bem. Mas, se mantivermos esse curso, vamos aquecer o planeta em 4 graus, segundo o cálculo do IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática] de agosto. É isso o que queremos? Se for isso, o limite de até 1,5 grau será ultrapassado ainda nesta década. Será uma catástrofe para nossa espécie e milhares de outras. Ou seja, não basta apenas preservar, eu vou ter que regenerar, tirar emissões da atmosfera, isso é impacto positivo.

Então, por uma questão de sobrevivência, isso vai se desdobrar em questões regulatórias, por exemplo, a força-tarefa de impacto que o G7 criou recentemente e que vai ter dois desdobramentos: uma frente de trabalho em contabilidade de impacto e outra de políticas econômicas para acelerar o net zero [emissões negativas líquidas]. Essas duas frentes são disruptivas, sendo puxadas pelos sete países mais ricos do planeta, que naturalmente vai se desdobrar no G20, e o Brasil será parte. Na hora que você começa a contabilizar a empresa não só pelo resultado que ela gera, mas também pelo impacto social e ambiental, isso muda completamente a lógica de operação e o resultado de uma empresa. Estou bem otimista de que nesta década teremos mudanças estruturais como esta.

Quando o sr. fala em governança de stakeholders, como isso se dá em termos de estrutura, participação em conselho, processos etc.?

Hoje não existe um framework convencionando o que é ou não governança de stakeholders. Se você perguntar para 100 executivos e investidores o que é stakeholder governance, cada um provavelmente vai responder alguma coisa diferente.

Mas o primeiro elemento é que você precisa ter uma diretoria responsável por isso, uma espécie de benefit director ou um diretor de impacto, alguém que zele por essa agenda. Da mesma maneira que existe um CFO que zela pelo bottom line (o resultado financeiro) na empresa, a gente precisa ter alguém que zele pelo triple bottom line (econômico, social e ambiental). O segundo elemento trata de você se relacionar com os stakeholders internos e externos da companhia, e isso pode se dar por meio de um comitê ou de um conselho de stakeholders.

E o terceiro elemento é o princípio de coparticipação, ou seja, você ter no seu Conselho de Administração membros da comunidade, colaboradores, membros independentes, enfim, compor um conselho de administração que seja multistakeholder. Isso é super controverso no mercado, acho que as culturas americana e brasileira não permitem a gente trabalhar nesse sentido. A cultura europeia é diferente, principalmente a alemã, que é super receptiva à coparticipação. Lá, tem empresas que historicamente possuem colaboradores dentro do Conselho de Administração, mas essa não é a realidade em outros países, mesmo o Reino Unido. Ainda na época da Theresa May como primeira-ministra, ela propôs no Parlamento uma proposta na governança corporativa em que o princípio de coparticipação era um dos elementos, e o Parlamento não aprovou por conta disso. Eu diria que não é algo tão receptivo do setor empresarial. É uma conversa bem embrionária.

E no nosso mercado de capitais, mais ainda, pois tanta coisa ainda não é praticada, como a independência nos conselhos?

Tivemos um avanço no Novo Mercado que foi a exigência do conselheiro independente, mas o Brasil andou de lado nos últimos anos e a gente segue atrás. No Reino Unido, o caminho para a mudança mandatória no reporte de impacto social e ambiental é sem volta. Aqui a CVM concluiu em março uma audiência pública sobre o disclosure [transparência] de práticas de impacto social, ambiental e de governança, e isso ainda é voluntário para as empresas.

Mesmo para as empresas do Novo Mercado?

Sim, e se a gente olhar o próprio Índice de Sustentabilidade Empresarial da B3, ainda a gente está com a barra bem aquém da fronteira de inovação da Europa e mesmo dos EUA. A Nasdaq e a SEC mudaram as exigências para diversidade no Conselho de Administração das empresas. Aqui no Brasil ainda se discutem cotas e há uma enorme dificuldade de aprofundar o assunto. Do ponto de vista regulatório, a MP da liberdade econômica pavimentou um caminho de desregulação no mercado de capitais no Brasil. Isso é um ponto preocupante porque pode fragilizar a governança das empresas e fazer o Brasil perder competitividade na direção dessa nova economia, quando comparado a outros mercados.

E por que o Brasil andou de lado esse tempo todo?

É difícil dar uma única razão, mas talvez dê para refletir sobre alguns fatores. Acho que o capitalismo brasileiro é diferente do americano, que é super distribuído e a empresa é pulverizada. Aqui, você tem o papel do controlador. O segundo motivo é o custo Brasil, que é altíssimo. Qualquer mudança regulatória que se faça vai onerar as empresas, então há uma aversão a qualquer intervenção nesse sentido. Além disso, entramos em uma onda de neoliberalismo, o que diminui, empobrece e simplifica o papel dos reguladores. Hoje, se você falar do papel do regulador em uma conversa, as pessoas ficam arrepiadas.

A manifestação de ordem mais política por parte do setor privado – o que não quer dizer partidária – é algo que tende a crescer no Brasil, como houve nos Estados Unidos em relação a Donald Trump?

Estamos vivendo um momento crescente no Brasil, por exemplo, com o manifesto dos empresários em defesa do sistema eleitoral eletrônico. Inclusive, depois desse manifesto eu fiquei pensando onde esses empresários estavam nos últimos meses [risos]. Isso é positivo no sentido de criar uma cultura e conscientização para separar o que é político do que é partidário, porque, quando isso se mistura, realmente ideologiza a conversa e essa não é a ideia. Mas os empresários e os investidores estão vendo o custo da omissão e do silêncio. Não tem negócio bom em um país ruim, não há como ter capitalismo em um país sem democracia. A gente está aprendendo isso na prática.