Por Magali Cabral  – Colaborou Matheus Fernandes

O estudo Pegada de Carbono da Carne Bovina Brasileira, a ser concluído no ano que vem, busca resultados quantitativos em toda a cadeia de valor, incluindo produção da ração, atividades de cria, recria e engorda, e nos processos dos frigoríficos, no transporte até a Europa 

Existe uma tendência crescente nos mercados internacionais para se calcular e comunicar os impactos ambientais dos produtos, em especial a pegada de carbono. A da carne bovina, por exemplo, poderá em breve fazer parte das exigências do mercado internacional, em especial o europeu. Essa força do mercado puxada pelos compradores (individuais e institucionais), e reforçada por políticas da Comissão Europeia, deve trazer importantes sinais para os produtores em todas as etapas do ciclo produtivo (do frigorífico até o produtor de ração) cumprirem um papel na transformação das práticas de produção que promova e incentive a redução de impactos ambientais.

A gestora de projetos do Programa Produção e Consumo Sustentáveis (PCS) do Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV EAESP (FGVces), Beatriz Kiss, sugere que, se quiser manter e aumentar suas vendas para a União Europeia, o Brasil precisa reduzir desde já eventuais riscos da exportação e, ao mesmo tempo, aumentar a competitividade dos produtos. Por exemplo, fomentar as práticas da pecuária sustentável no País e informar os impactos associados ao ciclo de vida da carne. “Até porque não tem outra opção”, diz (saiba mais sobre Avaliação de Ciclo de Vida neste vídeo).

Ocorre que as estimativas da pegada de carbono dos produtos brasileiros ainda são poucas e nem sempre muito precisas – diversos estudos foram desenvolvidos por organizações no exterior, gerando dúvidas quanto a qualidade e precisão dos dados utilizados nesses levantamentos que nem sempre refletem as condições de produção de um país tropical. Na ausência de melhores informações produzidas em território nacional, cálculos internacionais prevalecem e são os que “carimbam” a carne brasileira, eventualmente superestimando os valores das pegadas ou evidenciando apenas os seus aspectos negativos.

Uma dessas pesquisas, a Including Carbon Emissions from Deforestation in the Carbon Footprint of Brazilian Beef publicada em 2011 pelo periódico Environmental Science & Technology da Sociedade Americana de Químicos (American Chemical Society), diz que a pegada de carbono de 1 quilo de carne bovina brasileira pode chegar a 726 quilos de CO2 equivalente quando se leva em consideração a mudança do uso da terra – aspecto que pode envolver também as emissões provenientes de áreas desmatadas. Outros levantamentos apontam que, em países europeus como Reino Unido, Dinamarca e Suécia, as emissões variam entre 23 e 25 quilos de CO2 equivalente por quilo de carne produzida, o que representa uma pequena porcentagem do valor calculado para o produto nacional (neste vídeo você pode saber mais sobre o conceito de mudança no uso da terra).

A boa notícia é que estão em andamento várias iniciativas nacionais, embora ainda careçam de uma compreensão melhor do panorama brasileiro. Isto é, há que se considerar que cada tipo de carne, cada lugar, cada sistema de produção varia conforme a região e os biomas. “É preciso fazer a tipificação e a regionalização, mapear os diversos atores, os sistemas produtivos e as diferentes práticas adotadas, atribuindo resultados de emissão para cada um deles; não podemos generalizar, tendo um resultado único para o Brasil”, assinala Kiss.

Para atender a essa necessidade, o Programa PCS está conduzindo o projeto Pegada de Carbono da Carne Bovina Brasileira. O trabalho teve início em 2017 e deverá ser concluído no ano que vem, mas já é possível extrair algumas informações. “Queremos entender, com base em resultados quantitativos de emissão, onde estão realmente os pontos mais críticos dessa cadeia. A pegada de carbono é a técnica mais indicada para isso, pois permite essa visão abrangente da cadeia e de seus impactos climáticos”, explica a pesquisadora e coordenadora do projeto (leia mais aqui sobre a contribuição da iniciativa).

Segundo ela, o desmatamento relacionado à pecuária, item frequentemente mencionado como o “vilão da carne”, representa apenas uma das potenciais fontes de emissão de gases de efeito estufa (GEE) dessa cadeia. A técnica de Avaliação de Ciclo de Vida permite mapear, quantificar e compreender que existem impactos acontecendo também nas demais etapas da cadeia da pecuária: desde a produção da ração, passando pelas atividades de cria, recria e engorda, incluindo também os processos que acontecem nos frigoríficos, na etapa de consumo e todos os transportes envolvidos.

 Recorte da pesquisa

O estudo do PCS abrange o cálculo da pegada de carbono de três produtos de carne exportados para a Europa e deve apresentar resultados específicos de cada variável. Ainda que a exportação para a Europa represente uma pequena parcela da produção nacional em volume (em torno de 2%) – o Brasil responde por 42% de toda a carne bovina importada pela Europa, segundo dados da União Europeia. Ainda assim, a receita dos produtos vendidos para a Europa responde por aproximadamente 11% do faturamento do setor no país, sendo este mercado o mais importante em termos de faturamento depois dos mercados asiáticos (China e Hong Kong), segundo dados da  Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec).

A opção por esse recorte justifica-se no fato de os europeus, diferentemente dos compradores da Ásia, estarem trabalhando ativamente na construção de diretrizes para a rotulagem ambiental de produtos e demandando informações desse tipo. Em 2012 a Comissão Europeia lançou a iniciativa The Single Market for Green Products, que incentiva o cálculo da pegada ambiental dos produtos (Product Environmental Footprint – PEF). Esta atividade está atualmente “rodando” pilotos sobre como padronizar os cálculos e a comunicação ambiental do produto nos rótulos.

Tal iniciativa avança rapidamente e a carne é um dos produtos da lista prioritária do PEF. De acordo com Beatriz Kiss, as exigências europeias são baseadas na abordagem de ciclo de vida (vão muito além da produção de um inventário corporativo, por exemplo) e demandarão conhecimentos específicos sobre toda a cadeia da pecuária. Ou seja, o desafio será enorme para os exportadores – e também para os demais elos ligados direta ou indiretamente à produção da carne. “É possível comparar-se a medida com uma futura barreira não tarifária”, alerta.

Naturalmente isso tem provocado apreensão entre os exportadores de carne para a UE. Em vista de tamanho desafio, o trabalho em andamento no FGVces pretende, além de medir a pegada de carbono da carne exportada para a Europa, discutir também como essas novas exigências poderão afetar a competitividade do produto nacional.

O escopo de estudo passará por todas as fases da produção de carne (e principais insumos) até a chegada do produto no porto europeu. Atualmente, os trabalhos encontram-se em fase de definição dos atores mais indicados para fornecer os dados para as análises e refinamento das fronteiras. O projeto contemplará ainda uma capacitação para os principais atores, visando a disseminação dos conceitos de ciclo de vida e de pegada de carbono no setor e sua importância na competitividade.

Os três produtos escolhidos para esta análise – e mais um para servir de referência, foram: carne bovina in natura produzida no Brasil (referência); carne bovina in natura produzida no Brasil e exportada para o mercado europeu; carne bovina in natura produzida no Brasil e exportada para o mercado europeu através da Cota Hilton; e carne bovina in natura produzida no Brasil com boas práticas ambientais em programas estruturados.

A Cota Hilton foi criada em 1979 e estabeleceu um volume-limite de exportação de cortes bovinos de alta qualidade, provenientes de países credenciados, para a União Europeia. A cota atual do Brasil é de 10 mil toneladas de carne desossada por ano, mas o país não tem conseguido atingir esse volume máximo permitido.

O produto referência ajudará a fazer uma análise de sensibilidade: por exemplo, qual é a variação de emissões da pegada da carne exportada em relação ao produto típico do Brasil e em qual etapa ou processo estas apresentam maior impacto. No segundo universo, serão trabalhadas apenas fazendas e frigoríficos autorizados a exportar para a Europa. Existem no Brasil 45 frigoríficos aptos para a exportação para a Europa. Mais de 80% deles pertencem à rede controlada pelos três maiores do País – JBS, Marfrig e Minerva.

Para cada um dos produtos pesquisados haverá resultados específicos que refletem a realidade do escopo analisado. Ainda que essas informações não possam ser generalizadas, permitirá uma compreensão melhor do cenário atual: desde o mapeamento dos hotspots e a construção de metas e planos de mitigação até a construção de estratégias de comunicação para a valorização da carne nacional. “Por este motivo, é de extrema relevância o envolvimento dos diversos atores da cadeia da pecuária neste projeto, já que estes serão os primeiros beneficiários dos resultados gerados”, afirma Beatriz Kiss.

Segundo ela, não se pretende gerar “números mágicos” para a carne (como os xis quilos de CO2 para cada quilo de carne), mas, sim, produzir conhecimento em torno das muitas variáveis que fazem parte desta complexa cadeia, olhando para o lado “meio cheio” do copo. “O Brasil já possui muitas práticas sustentáveis na produção de gado (inclusive na Amazônia), e é preciso desmistificar que a carne nacional é uma só e que todas as formas e locais de produção impactam do mesmo modo; há produtos mais eficientes, há produtos menos eficientes, e o consumidor precisa compreender essas diferenças”, complementa.

Outro resultado da iniciativa será dimensionar o potencial de redução da pegada ao longo da cadeia produtiva. A cadeia toda (incluindo os pecuaristas e os frigoríficos) saberá exatamente onde agir e poderá se articular para promover a redução da pegada de carbono, evitando investimentos em determinadas tecnologias não relacionadas com o principal foco de emissão de gases de efeito estufa do produto.

Pecuária intensiva e extensiva

Uma discussão que faz parte do debate para se produzir uma carne mais sustentável envolve os sistemas de produção existentes – o extensivo e o intensivo. No primeiro, o gado é criado em campo aberto, com a técnica de pastejo contínuo, em pastagens de baixa qualidade que recebem pouco ou nenhum tipo fertilização. Os investimentos necessários são baixos e, para aumentar a produção, é preciso aumentar a área de pastagem. Daí surgem os debates em torno da expansão e da pressão da pecuária brasileira sobre as áreas de vegetação nativa no Cerrado e na Amazônia, que pode promover as emissões relacionadas à mudança do uso da terra, discutidas anteriormente.

No segundo sistema, os animais são mantidos em áreas menores, chamadas de piquetes, nas quais são aplicadas técnicas de pastejo rotacionado e de melhoria da fertilidade do solo, aliados à suplementação alimentar do rebanho por meio de ração. Isso faz com que a produtividade em relação a cabeças de gado por hectare e quilos de carne por cabeça sejam muito maiores neste sistema do que no anterior. Apesar disso, segundo dados de 2009, apenas 5% das fazendas de pecuária do País faziam uso do sistema intensivo, enquanto o extensivo representava cerca de 80% da produção pecuária. Os 15% restantes eram produzidos no sistema semi-intensivo, um híbrido em que o animal é criado em campo aberto, porém passa a um sistema intensivo principalmente nas fases de engorda e terminação.

A suplementação que ocorre por meio de ração no sistema intensivo também é um fator preocupante, pois essa ração é composta principalmente de soja e milho, e questões relacionadas aos impactos do cultivo desses grãos precisam ser levados em consideração na hora de avaliar a sustentabilidade do produto final (carne bovina), em especial as emissões de GEE: como a soja e o milho foram cultivados com a finalidade de alimentar o gado, estes passam a fazer parte do ciclo de vida desse produto e seus impactos ambientais devem ser também contabilizados. Entram na conta os fatores relevantes desse cultivo, como o uso dos fertilizantes, o local em que foram produzidos, se houve ou não mudança de uso da terra, a transformação dos grãos em ração e o transporte até o local de consumo. Só quando todas essas etapas são incluídas em uma avaliação é que se pode ter mais confiabilidade nos resultados finais de um estudo.

Em contraponto, pode-se dizer que a criação do gado em sistemas intensivos evita o desmatamento de novas áreas, uma vez que, para aumentar a produtividade deste sistema, busca-se um maior número de cabeças de gado por hectare (e não mais hectares para acomodar mais cabeças). Ainda que nem sempre a expansão das áreas produtivas esteja diretamente ligada ao desmatamento, a discussão em torno dos impactos ambientais e das emissões de GEE nos sistemas intensivo e extensivo é recorrente. Sem o uso de ferramentas que permitam quantificar estes impactos de forma abrangente (ao longo de toda a cadeia e da vida do produto – como a ACV), fica difícil indicar qual sistema é o mais apropriado em qual caso. Há ainda as variações regionais e dos biomas, que impactam diretamente nos resultados.

É nesse contexto que o Grupo de Trabalho da Pecuária Sustentável (GTPS) vem identificando e divulgando as melhores práticas de produção relacionadas às questões ambientais. O GTPS mapeou mais de 25 iniciativas espalhadas pelo Brasil que adotam práticas de produção mais sustentáveis, inclusive na Amazônia e no Cerrado. Um exemplo é o Programa Novo Campo, que consiste em um protocolo de adesão voluntária de pecuária sustentável em fazendas da Amazônia, monitorado pelo Instituto Centro de Vida (ICV). Para evitar novos desmatamentos na região de Alta Floresta, norte de Mato Grosso, os pecuaristas que aderiram ao Novo Campo aumentaram sua produtividade adotando o sistema de produção intensivo, com fazendas alcançando uma produtividade de até 2,7 cabeças por hectare, muito mais alta que a média do Estado, que é de 0,76, segundo dados do próprio ICV.